Encontro com o autor-personagem (1)

Há o escritor que cria um universo totalmente diferente do seu e o escritor que é parte inseparável do universo que criou
01/05/2008

Sábado, dezesseis horas, não chove mais. Eu estou no Fran’s Café da Heitor Penteado com a Pompéia, em frente à estação Vila Madalena do metrô. Já folheei várias revistas, agora estou sentado ao lado da janelona, lendo A maldição da moleira, de Índigo. A algaravia é suportável, tanto a de fora quanto a de dentro. Denis é o primeiro a chegar. Ele ainda não conhece os livros dessa campineira que hoje mora em São Paulo. Luiz e Luciana chegam minutos depois. Luciana já leu Saga animal. Antes de começar a reunião — estamos preparando a coleção Panacéia, irmã da revista Puçanga, mas outra hora falarei a respeito de ambas — eu comento sobre o livro que estou lendo, sobre a autora, Luciana fala do livro que leu, Denis e Luiz folheiam meu exemplar, a conversa aos poucos se afasta do particular e cai no geral: os muitos tipos existentes de escritor, que, para facilitar, acabam sendo reduzidos a dois. O escritor que cria um universo totalmente diferente do seu e o escritor que é parte inseparável do universo que criou. Pedimos café, cerveja, limonada suíça, chá gelado com limão, não necessariamente nessa ordem, e passamos à Panacéia.

Voltando à história dos tipos de escritor: há o escritor que cria um universo totalmente diferente do seu e o escritor que é parte inseparável do universo que criou. O primeiro prefere não misturar a esfera da literatura com a da realidade, seu prazer está em ter à mão dois planos bem diferentes, o do cotidiano e o da ficção. O segundo transforma a esfera da realidade na da literatura, que imediatamente é transportada para a da realidade, e graças a esse vaivém as duas acabam bem misturadas. Índigo, a menos que eu esteja muito enganado, pertence a essa segunda categoria de escritores. Falo dos escritores que devagar, sem que a família e os amigos percebam — apenas os leitores mais afastados notam isso —, conforme vão elaborando e publicando sua obra também vão ficando cada vez mais parecidos com seus narradores e suas personagens.

Não fazem isso de propósito, é claro que não. O planejamento da carreira literária solicita pequenas alterações momentâneas de consciência e prevê muitos compromissos, mas essa ininterrupta mudança estrutural de personalidade não é um deles. Ela acontece espontaneamente, naturalmente, tranqüilamente. Primeiro o escritor projeta para fora e dá vida a suas criações, por meio da escritura, depois elas passam a viver mais intensamente dentro dele. Primeiro o escritor cria no papel as pessoas, os objetos e as ações de seu universo paralelo, em seguida esse universo passa a falar com ele, a sussurrar, a opinar, a interferir em suas decisões mais íntimas. A espécie de plenitude que esse fenômeno proporciona é maravilhosa e muito rara, pouca gente no planeta pode dizer que já experimentou a serenidade e a lucidez que ele provoca. Esse escritor não conhece, por exemplo, a solidão, porque ele é multidão.

A construção da personalidade
Estatisticamente a maioria dos autores do tipo pessoa-personagem escreve apenas para o público adulto. São os poetas, os ficcionistas e os dramaturgos cuja aparência peculiar é a mesma de seus heróis. São os poetas, os ficcionistas e os dramaturgos cujo comportamento excêntrico é o mesmo de suas criações. São os Rimbauds, os Maiakovskis, os Pessoas, os Joyces, os Kafkas, as Clarices, os Artauds, os Becketts, os Ionescos da vida. Já entre os autores que escrevem para as crianças e os jovens há poucos desse tipo. No campo da literatura infanto-juvenil o escritor é alguém que pode até ter as mesmas opiniões e pensar da mesma maneira que suas criações, mas em geral ele não se assemelha a elas, não no sentido pleno do verbo.

Conversando com minha filha adolescente sobre os mangás que anda lendo, ela disse sobre Matsuri Hino e Masami Tsuda, duas autoras de shojo mangá (mangá feminino), algo que talvez esteja relacionado também com os escritores. Ela percebeu, visitando blogues, sites e o YouTube, que a autora da série Merupuri e a da série Karekano são praticamente personagens de mangá, mas de carne e osso. É verdade, no universo desses peculiares quadrinhos japoneses é muito comum os autores, seres também bastante peculiares, serem confundidos com suas próprias personagens. Nessa atividade há algo que extrapola os limites da indústria do entretenimento, algo que aproxima a fantasia e o comportamento, fundindo os dois, trazendo para o cotidiano sem graça o entusiasmo e a delicadeza dos quadrinhos, levando para os quadrinhos os desejos e as neuroses do cotidiano. Mas, pensando bem, não seria essa extrapolação de limites o encanto irresistível também de outras atividades igualmente populares: a dos animês e, há décadas, a da música pop? Principalmente a da música pop. De Elvis a Jack White, passando por Hendrix, Janis Joplin, Lennon, Zappa, Raulzito, Rita Lee, Nick Cave… Não são todos eles músicos do tipo pessoa-personagem, alguém nem pessoa nem personagem, mas as duas coisas ao mesmo tempo?

Mas na esfera da literatura feita para as crianças e os jovens o escritor do tipo pessoa-personagem não é tão comum assim. Tanto que, dos já falecidos, só me lembro de três: Lewis Carroll, Dr. Seuss e Sílvia Orthof. Diz o folclore que também Hans Christian Andersen e James Barrie eram desse tipo. Não tenho certeza, mas vou investigar. Por ora o fato mais importante é esse: Índigo pertence a essa pequena comunidade de escritores meio reais meio ficcionais, cuja personalidade foi sendo construída — ou escrita — ao longo dos anos com muita matéria literária, como se sua existência também fosse parte do sistema narrativo formado por seus livros. Prestem atenção. Observem bem. Em muitos casos, dependendo da intensidade dessa interação, até mesmo a aparência física dos escritores desse grupo aos poucos ficará mais fortemente literária. O desenho dos olhos, a curva do nariz, as mãos e os joelhos, o jeito de andar ou sentar, o timbre da voz, cada detalhe de seu corpo em movimento devagar começará a evocar o movimento e os detalhes externos e internos das pessoas que ele criou.

Muitos em um, um em muitos
A principal categoria discursiva na obra desses escritores é o narrador, na verdade, o narrador em primeira pessoa, o narrador dentro dos acontecimentos, como personagem comprometida com a própria história, o herói que fala diretamente ao leitor, o sujeito que conta ele mesmo seu drama, sem intermediários, dando a impressão de estar confidenciando algo a alguém muito especial. O emprego da primeira pessoa cria essa fascinante ilusão de proximidade, como se o autor e o leitor fossem amigos íntimos. Todos nós sabemos que até mesmo as histórias mais triviais adquirem mais força quando são narradas pelos seus protagonistas. Desse modo, o leitor tem a impressão — ele às vezes não percebe isso, mas essa impressão é falsa, artificial, literária — de estar ouvindo a história da boca do próprio autor, que se vê subitamente confundido com o narrador que ele mesmo criou. Quanto melhor é o escritor, mais interessante é seu narrador em primeira pessoa, que, por sua vez, mais facilmente será confundido com o próprio escritor, que, por vaidade ou diversão, prontamente aceitará para si todas as qualidades de sua criação. Assim o que a princípio era apenas ficção passa a definir também o herói empírico: o autor. Essa mistura de planos distintos faz parte do processo defendido por muitos criadores — os românticos, os simbolistas, os surrealistas — de fundir ou, na impossibilidade disso, de ao menos confundir a arte e a vida.

O discurso em primeira pessoa, justamente o da máxima intimidade, é o mais constante nas narrativas de Índigo. É ele que torna mais estranho e engraçado tudo o que seus protagonistas mais estranhos e engraçados têm a contar. Nos romances, o determinado e atrapalhado Ígor de Saga animal e Um dálmata descontrolado, a insegura Ágata de Perdendo perninhas, o recém-nascido Heitor d’A maldição da moleira e, na coletânea de contos Festa da mexerica, a Prodigiosa Pâmela de Mickey em mim e a irritada garota sem nome de Tempo congelado, todos esses narradores conseguem seduzir o leitor logo nas primeiras linhas porque rapidamente o convencem, falando diretamente com ele, de que é tudo verdade, aconteceu assim mesmo, sem tirar nem pôr. São narradores diferentes, em situações muito diferentes, mas todos se expressam de maneira semelhante — o mesmo vocabulário, as mesmas gírias, a mesma deliciosa ironia — porque são todos a mesma pessoa: Índigo.

Eles são a Índigo de carne e osso, que pode ser encontrada nos pontos mais descontraídos da Vila Madalena — tomando um chope na Mercearia São Pedro ou autografando um livro na Livraria da Vila —, eles também são a Índigo digital, que pode ser encontrada on-line no Diário da Odalisca (http://diariodaodalisca.zip.net), falando de obsessões, bichos ou subempregos. Ao mesmo tempo ela é o Ígor, a Ágata, o Heitor e todos os outros, ela é a mãe grávida de um cão, ela é o demônio verde da quinta série, ela é a clássica conversa na cozinha, e a percepção de que entre essas diversas identidades há a mais completa e perfeita correspondência, essa percepção é bastante excitante. Afinal, se você foi seduzido pelos romances e pelos contos, o que poderia ser melhor do que conhecer pessoalmente o protagonista de cada um deles? O que poderia ser mais estimulante do que saber a opinião deles sobre os mais diferentes assuntos, principalmente sobre tudo o que ainda não foi parar num desses livros? Conhecer pessoalmente Índigo é conhecer pessoalmente seus personagens depois do expediente, fora do local de trabalho.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

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