Vivemos em tempos ameaçadores. A mídia nos avisa de catástrofes naturais inusitadas: terremotos e tsunamis, enchentes e secas, frios excessivos e calores escorchantes. O novo temor vem na ameaça de escassez de alimentos, mas este é um mal que já apavorou a humanidade vezes sem conta. Há cerca de três séculos Jonathan Swift, famoso autor das Viagens de Gulliver, publicou um livreto não tão renomado, Modesta proposição, onde expunha uma engenhosa solução, bem fundamentada pela lógica, para o fim da fome na Irlanda: a ingestão de carne humana, preferencialmente de bebês de um ano de idade. Consta que, na época, sua proposta horrorizou a muitos que a tomaram como uma ofensa à moralidade. Independentemente da presença ou não de ironia na obra de Swift, o fato é que o homem é um animal onívoro, e Devorando o vizinho, livro de Daniel Diehl e de Mark P. Donnelly, revela que a carne humana nunca esteve completamente fora dos cardápios prediletos da humanidade.
Historiadores, os dois autores escrevem esta história do canibalismo dividindo o livro em duas partes. A primeira, mais sucinta, falam de “canibalismo cultural” e examinam mitos e culturas distantes no tempo e no espaço, demonstrando que o hábito de ingestão de carne humana nos acompanha desde os primórdios. Evidências arqueológicas revelam que nossos antepassados se compraziam com a carne de seus semelhantes. Códigos de conduta religiosos institucionalizaram a prática que inspirou relatos folclóricos e ficcionais presentes em todas as partes do globo. Em muitos casos, todavia, o canibalismo parece ocorrer apenas por uma questão de preferência alimentar, não havendo razões religiosas nem grandes desastres, guerras e fome que justifiquem a recorrência a este tipo de alimento. Em outros casos, que os autores classificam como canibalismo “in extremis”, são as circunstâncias adversas que levam algumas pessoas a recorrer à ingestão de seus semelhantes para subsistir no caso de acidentes de avião, naufrágios ou grande fome. Até então o leitor acredita estar lendo uma tese de história, embora estranhe, logo no primeiro capítulo, a reprodução de um roteiro de piada do Monthy Python, que é amenizada pela conclusão de que “há fronteiras além das quais não se pode transgredir”.
A segunda parte do livro é composta por quinze relatos macabros do que os autores chamam de “casos de estudo: infringindo tabus.” A exposição de ocorrências de canibalismo, em ordem cronológica, desde o remoto caso de uma família canibal, que aterrorizou a Escócia do século 15 por cerca de trinta e cinco anos e que gerou poemas e lendas, até casos contemporâneos, revela que o hábito de matar e comer seres humanos pode ter sido considerado inaceitável socialmente, mas que esse tabu não tem sido respeitado. Após o relato do caso escocês, outro caso famoso, na Inglaterra do final do século 18, vem revelado em seus detalhes: Sweeney Todd e Margery Lovett, unidos, não só se alimentaram de carne humana como fizeram um lucrativo negócio de tortas salgadas que alimentou a cidade de Londres durante perto de uma década. Esse caso pode não ter inspirado a criação de lendas e poemas, mas é o tema de um famoso musical, que foi sucesso nos teatros e em filmes.
No século 19 os autores encontraram, no oeste americano, a história de Alfred Packer. Este caso, segundo a pesquisa, revela o espírito empresarial americano, que aproveitou a história para criar canções, para batizar lanchonetes em universidades (Alfred E. Parker Memorial Grill, em Boulder), além da publicação de livros de receitas. Dois filmes sobre a vida deste “herói” americano foram feitos, um em 1980 e outro em 1996. O livro ainda nos informa da existência de uma loja virtual onde se pode encontrar não só os filmes e livros mencionados, como comprar camisetas, souvenires e (pasmem!) cartões de natal celebrando o famigerado canibal do Velho Oeste.
Salsichas
O século 20 revela mais que dez ocorrências de canibalismo, geralmente mesclados a perversões sexuais. Na época da depressão entre as duas grandes guerras mundiais, dois casos na Alemanha se mantêm vivos na memória do povo local. Tanto Georg Grossman quanto Karl Denke tiveram sucesso vendendo carne humana — na forma de salsichas ou de carne em conserva — para populações famintas. O advento da guerra fez com que esses episódios fossem esquecidos, restando apenas lembranças locais, e poucos arquivos, devido à destruição ocasionada pelos bombardeios durante a guerra.
Já nos três casos seguintes, todos ocorridos nos Estados Unidos, os canibais preferem consumir suas vítimas sozinhos, e sempre elogiam os assados “deliciosos” que obtiveram com os despojos de suas vítimas. Uma constante parece se estabelecer nos casos em questão — os crimes de Albert Fish; de Ottis Toole e Henry Lee Lucas; e de Ed Gein — o julgamento dos réus levanta sempre a existência de uma doença mental que, se não explica, ao menos tranqüiliza o público quanto à excepcionalidade dos acontecimentos. Dos três casos, vale a pena mencionar que o de Ed Gein foi o inspirador do filme Psicose, de Hitchcock; do filme It; do personagem Leatherface do filme O massacre da serra elétrica; bem como do personagem Buffalo Bill, assassino travesti que trajava uma roupa feita com a pele das mulheres que vitimava; e ainda aparece em traços de Hannibal Lecter, o famoso canibal de O silêncio dos inocentes.
Para evitar parecer que os casos de canibalismo se restringem ao mundo capitalista. Os autores contam o caso ocorrido na Rússia, os crimes de André Chikatilo, o estripador de Rostov — 36 vítimas na contagem da polícia, e 55 na do criminoso — que outorgou à cidade de Rostov o infame título de capital mundial dos crimes em série. Essa história veio a inspirar o filme de televisão Cidadão X, estrelado por Donald Sutherland, que faz o papel do inspetor que por mais de dez anos insistiu na investigação dos crimes e finalmente conseguiu solucioná-los.
Zumbis sexuais
De volta aos Estados Unidos, os autores revelam sua pesquisa sobre a história de um rapaz de classe média, de boa aparência e educação: Jeffrey Dahmer. Homossexual, ele pretendia fazer de suas vítimas zumbis sexuais, injetando ácido muriático em seus cérebros para mantê-las vivas e escravizá-las sexualmente. Não teve sucesso em suas experiências, e acabou assassinado na prisão. Este caso se destaca, pois a cidade de Milwaukee comprou todo o conteúdo da residência de Dahmer e incinerou-o, evitando que aproveitadores tentassem lucrar com a venda de souvenires ou com a criação de um museu dedicado ao criminoso.
Estarrecedor é o caso do canibal bem-sucedido, Issei Sagawa. De família rica, mas de saúde frágil e aparência estranha, este “padrinho do canibalismo” está em liberdade e escreveu um romance sobre sua própria experiência, In the fog, sucesso editorial. Educado nas melhores universidades, encontrou sua vítima na Sorbonne, em Paris. Conta ele que sua obsessão pelo canibalismo se deve a uma lembrança da infância, quando seu tio e seu pai encenaram uma brincadeira em que um fingia ser um monstro canibal e outro um herói samurai. Desde essa noite, ele se interessou por “consumir” uma mulher loura, alta e de pele branca, o que fez sem remorso e agora “fatura” com seu crime em programas de tevê e em revistas em quadrinhos.
Os casos do século 20 não se esgotam aí. Nos três capítulos seguintes são contadas as histórias de Hadden e Bradfield Clark, de Gary Heidnik, americanos, e de Nicolas Claux, o vampiro de Paris, outro que ganha a vida explorando seu caso de canibal “aposentado”.
Mas a via crucis do leitor ainda não terminou. O século 21 traz mais histórias de embrulhar o estômago, como, por exemplo, a de Armin Meiwes, que, após vasculhar os sites sobre canibalismo na internet, encontrou uma vítima disposta a se deixar matar e capaz até mesmo de compartilhar um jantar feito com seu próprio pênis extirpado antes de sua morte, registrado em vídeo. Apesar de inspirar filmes e canções, este assassino se encontra condenado à prisão perpétua. A poucas páginas do final, temos a esperança de que uma conclusão seja tirada de todo esse desfilar de horrores, mas tal não sucede: incansáveis, os autores continuam apresentando outros casos de canibalismo. Relatam o caso de Marc Sappinton, único assassino em série de cor negra de que se tem notícia até hoje, e de sua obsessão vampiresca: ele bebia o sangue de suas vítimas, comandado por vozes no interior de sua cabeça. E, voltando à Rússia, relacionam vários casos de canibalismo “crônico” na Ucrânia e em outras regiões da antiga União Soviética.
Finalizando, eles não se acreditam capazes de chegar a uma conclusão sobre sua pesquisa, além de alguma ligeiras generalizações tais como o fato de que a internet pode facilitar a pesquisa de vítimas, sem expor os assassinos às inconveniências de “expedições de caça”. Levantam “lebres” que deixam escapulir, apenas sugerindo que as mulheres podem estar desejosas de competir com os homens até no canibalismo. E fazem aquilo mesmo o que condenam: ao exporem com abundância de detalhes os casos que pesquisaram (e eles afirmam que têm casos bastante para fazer um segundo volume de sua obra), eles estão “explorando ao máximo” “cada ato hediondo e crime abominável” e ainda disseminando, com a menção dos filmes, sites de internet e canções que tratam do assunto, mais alimento para mentes perturbadas.
São de tal modo eficientes que a crítica fica tentada a adotar as práticas descritas e pensa seriamente em transformar Diehl e Donnelly num ensopado que impeça que o segundo volume de dissabores venha a ser publicado.