Breve memória pessoal da estada e da passagem do irritadiço Senhor Charles Darwin por Recife & Olinda

Estamos quase no fim de 1882, e ele morreu no quarto mês deste ano
Ilustração: Ramon Muniz
01/05/2008

Estamos quase no fim de 1882, e ele morreu no quarto mês deste ano —segundo leio num jornal inglês de abril, amassado de muitas mãos (é um exemplar dos que me chegam pelas mãos solícitas de ingleses de navios aportados aqui no Recife).

O nome é o mesmo, e mesma é a profissão, ou a ciência do seu saber, quando aqui esteve. Refiro-me ao insigne Mr. Charles Robert Darwin, que me pagou para alugar e arreiar dois burros, de modo a levá-lo até os ermos de Olinda. Ainda era jovem, embora impaciente como um velho ranzinza. Passageiro no HSM Beagle (quer dizer, mais do que passageiro, pois era um estudioso a bordo do veleiro), a mim foi confiado como um sábio de pouca idade, viajando cercado de respeito e tratado com grande deferência pelo capitão Fitzroy.

Então, não há como errar: foi ele mesmo que o comandante do navio confiou aos meus cuidados, no passeio de estudos que quis fazer na nossa Província o cientista falecido no meio de tanta controvérsia sobre a sua tal “teoria evolucionista” (também, para mim, escandalosa) a respeito da suposta origem comum da humanidade e de animais de quatro patas, pelo que ouço falar neste rincão de Pernambuco — onde desembarcou, acho eu, na segunda semana do agosto chuvoso de 1836.

Eu não fui sempre este velho (de boa memória, entretanto) que fica encostado no cais, sem trabalho e sem gosto de vê-lo a ser feito, de qualquer jeito, hoje, pelos jovens fortes como eu era, quando podia botar aquele inglês no braço, para que não se sujassem as suas botas finas nos quintais encharcados.

Homem curioso e teimoso como ele eu nunca vi. E rico — pelo que me pareceu, tão logo desceu a escada do Beagle, cortesmente escoltado pelo comandante, que me disse: “Fica aos seus cuidados esta cabeça valiosa para o mundo”.

Podia ser valiosa, mas era já bastante calva — e queimada do sol no tombadilho do veleiro rápido e afeito aos mares mais distantes do mundo, dentro do qual a sua conversa devia ser apreciada, imagino, à mesa do honorável capitão desse barco (um descendente direto do rei Charles II). O Charles que foi entregue a este brasileiro de pés nus, era, entretanto, também aristocrata, neto de médico e, pelo que estou sabendo por via do tal jornal britânico — que eu aprendi a ler sem professor, ou tão somente de ir perguntando e catando as palavras —, um celebrado (ou celerado?) naturalist.

Naturalistas devem ser, suponho, naturalmente mal-humorados como aquele inglês — o mais mal-humorado que eu conheci embarcado em navio comum da marinha mercante ou em barco elegante como aquele Beagle (bigle, cão lebreiro, espião), nave de investigação, viajando com o objetivo de aprimorar a cartografia do mundo e obter descrições de recursos naturais aproveitáveis para posterior exploração, se é que me entendem.

Hoje estou sabendo com quantos paus se faz uma “jangada” daquelas, à cata de observar não só as coisas da natureza, “as formações geológicas — conforme explicou-me o próprio Darwin — em ilhas e continentes cheios de fósseis e organismos vivos”.

Seja como for, ali estava o sujeito seco, um cientista moço e já venerável, naquela altura muito (ilegível, no manuscrito original) pelo fato do barco ter sido obrigado a parar no Recife, na viagem de volta.

“Ventos contrários nos impediram de seguir direto para as ilhas de Cabo Verde”, deu-se ao trabalho de me explicar, condescendente debaixo do guarda-sol, a meio caminho de Olinda. Antes de chegar lá nos montes de casario branco, teve a falta de tato de ir falando mal do que lhe fora dado ver, até então: “Achei a cidade detestável por toda parte, essa é a verdade, meu rapaz. As ruas estreitas, mal calçadas e imundas; as casas, altas e lúgubres”…

Meu rapaz. Como se ele fosse muito mais velho do que eu! Sujeito pedante. Teria nascido quando? Em 1808? Em 1809? Se muito, em 1810, fazendo as contas do que me contou, naquela ocasião, sobre haver sido mandado para a Universidade de Edinburgh, a fim de estudar medicina, aos dezesseis anos…

“Não concluí o curso” — lembro da sua boquinha irônica a recitar mais para si, na evocação do passado recente do fedelho depois enviado (também fez questão de informar) para estudar artes na Universidade de Cambridge e, posteriormente, tornar-se um “cavalheiro a serviço de Deus”, sabe-se lá o que isso quer exatamente dizer, na paróquia reformada dos súditos de Sua Majestade e chefe da Igreja de Albion, separada da grande família dos católicos herdeiros diretos dos primitivos cristãos das catacumbas.

“Formei-me há cinco anos (embora eu nada houvesse perguntado), e, aí, embarquei no veleiro, e por isso não vejo a hora de voltar para a Inglaterra.” E olhou-me, surpreso (acho que estivera divagando para a própria mente, sendo eu um vazio completo à sua frente). “Não sei por que estou a lhe contar tudo isso. Quanta umidade, meu Deus!, e que clima ruim para a saúde”…

Eu estava alheio, por assim devo dizer, àquelas queixas, misturadas com as reminiscências (palavra bonita) numa linguagem que o “mister” tentava fazer compreensível (ele tinha habilidade para línguas), uma grande cabeça e uma grande capacidade de resmungar em muitos idiomas, de maneira que eu também não via a hora de devolvê-lo ao seu navio saudoso das friezas da Europa. O brasileirinho aqui fazia que estivesse entendendo tudo das palavras ainda agora se desenrolando na minha cabeça, como uma fita vermelha do chapéu de alguma moça, levado pelo vento.

E o passeio poderia ter terminado ali, nos mangues que separam o Recife da valorosa Olinda, mas o homem queria porque queria subir lá, a fim de ganhar acesso a alguma colina não cultivada, onde desejava chegar para “poder examinar do alto (foi o que disse) a região toda”.

Assim, retomamos a marcha debaixo da chuva fina, e foi na velha Olinda que o inglês armou aquela confusão dos diabos, tentando atravessar as hortas de pelo menos duas casas, julgando que era do seu direito de estudioso o acesso livre e imediato pelo meio das propriedades aonde chegamos a encontrar até uma jovem casta (eu suponho), bem à vontade, a qual tomou, coitada, um susto daqueles!, o visitante ficando rubro até à raiz dos cabelos (toda uma linha ilegível, no manuscrito original) no meio do que surgiu, portanto, aquele alfacinha da Vila, os bigodes eriçados e enfurecido nos altos tamancos da raiva, por ver o jovem e nervoso Charles Robert ali plantado () mais do que nunca irritadiço (sem razão, ao meu ver), a brandir o guarda-chuva no meio das bananeiras molhadas.

“Do que o senhor está rindo?” — ele parou para me perguntar, trocando o tratamento para o tom formal que resolveu me dispensar durante todo o percurso de volta, no lombo dos burrinhos pacientes como esse senhor Mr. Darwin parece que se agora tornou, diante das reações à tal “teoria da Evolução”, exposta no seu livro (que ainda não li, nem quero ler).

Sei apenas o que foi escrito em alguns jornais que me chegam, depois de meses e meses lidos e relidos por tripulações como a do New Beagle: sobre as “Espécies”, ele desenvolve “a idéia da variabilidade delas (cito de cabeça ainda boa), a partir da hipótese das atuais terem possuído antepassados comuns, em face das conclusões a que chegou, após longas viagens com a finalidade do exame da ocorrência de processos biológicos semelhantes em áreas geográficas e com seres vivos diferentes”, etc., etc.

É o que dizem, tão somente (e cá eu não confio em nada que esteja fora do conhecimento que Deus aprova e permite que se espalhe nos quatro cantos da terra cheia de ingleses pacientes e impacientes).

De modo que é isto: eu conheci o personagem no centro de discórdia ainda viva, o professor que chamam de “evolucionista”, de boca torcida, digo, ele também, um ricto de desprezo pelas “nações de escravos”, no canto dos lábios secos, talvez virgens de bebida ou pelo menos de líquidos mais estimulantes do que água, em noites de farras seguidas, como este escravo tem a recordar não com orgulho, porém com menos a lamentar, diante da impiedade da morte também abstêmia certamente — se é que essa senhora não se satisfaz com embriagar-se das doses do medo daqueles que ela chama à parte, para uma “conversinha” bem triste.

Enfim, não sei se alguém, aqui, ainda se lembra de Charles Robert Darwin como eu me lembro, dele e do capitão (o vice-almirante Fitzroy também era Robert), sendo a diferença maior entre os dois o fino trato deste último, um fidalgo de alma, acima de tudo. Ao primeiro, talvez sobrasse a árvore cinzenta do saber — enquanto lhe faltava o tato, na mesma medida, ou, quem sabe, a delicadeza e, com certeza, a paciência.

Virtudes que, hoje, são as mais importantes para mim, aos 69 anos, na mesmíssima cidade que o jovem sábio detestou tanto quanto eu detesto a sua teoria da nossa comum (e mais remota) ascendência, macacos me mordam.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho