A mãe morta

Conto de Rodrigo Gurgel
01/05/2008

Em memória de Arthur Schnitzler, que sonhou esta história.

O cadáver da mulher jazia no meio da cama de casal: os dedos entrelaçados sobre o estômago, as unhas brilhando, recém-pintadas de esmalte transparente, e os lábios, cobertos pelo batom leve, que desenhavam a iminência de um sorriso. Tal expressão de serenidade, contudo, poderia revelar, ao observador atento ou àqueles que a conheceram, certo traço de sarcasmo, o desprezo que os arrogantes dedicam não só aos seus próximos, mas também, às vezes, à morte.

Lá fora, um temporal de verão derramava sua fúria. Para o cadáver, no entanto, não existiam chuvas ou calamidades. O cabelo grisalho, o silêncio e a pele clara representavam alguns dos poucos e últimos sinais que transpareciam involuntariamente, pois tudo naquele corpo havia começado a apodrecer.

Quem vestiu a morta teve cuidados excessivos: brincos e um broche, no formato de flor, davam a impressão de que, na altura dos seus cinqüenta anos, ela adormecera em uma pose mórbida, aguardando alguém que a levaria, talvez, a um passeio. Descendo pelas faces, as manchas escuras eram mal encobertas pelas camadas de base e pelo blush rosado. E dois outros pormenores passariam, infelizmente, despercebidos aos visitantes do velório: as meias sete oitavos impregnavam o corpo de uma sensualidade lúgubre; e se algum fetichista afastasse as flores do caixão, para erguer a barra do vestido preto, encontraria também cintas-ligas, a confirmar, certamente, características da extinta personalidade.

Uma lamparina queimava num copo com azeite, em cima do criado-mudo. A chuva vinha fustigar a janela. Sob o cinza-chumbo daquele fim de tarde, o calor preenchia o quarto, misturando-se ao cheiro azedo dos defuntos. Penduradas na parede defronte à cama, algumas fotos, de cores esmaecidas, lembravam festas e outros momentos de prazer. Numa delas, a morta refulgia no vigor dos vinte anos, o rosto transfigurado pela maquiagem, os cabelos longos cobrindo parte do decote sedutor, grudada a um parceiro idoso, cujo sorriso, transbordante de triunfalismo, faria um cínico recordar-se dos garanhões que investem todas as forças na conquista da última fêmea, antes de serem substituídos por um macho mais jovem na liderança da manada.

Gradativamente, a noite tornava mais pálido o colorido das fotografias, reforçando a atmosfera tumular do quarto, quebrada apenas pela chuva insistente e pelo barulho da enxurrada que, descendo a rua, engolia os bueiros.

Ele entrou com um toque suave na maçaneta, desviando os olhos da mulher estirada na cama, preferindo concentrar-se nos caminhos que as gotas de chuva desenhavam na janela. Era jovem, magro, baixo, os cabelos loiros e curtos repartidos do lado direito. Fechou a porta lentamente e esperou as pupilas se acostumarem à luz difusa do anoitecer, dirigindo-se, depois, para o leito, a fim de sentar aos pés da morta.

— Mamãe… — ele balbuciou, desprotegido, experimentando o amargor dos que constatam a inutilidade do próprio choro. Sequer as lembranças da infância pareciam sobreviver, restando-lhe o vazio de quem se encontra, a primeira vez, diante de um fato inelutável.

Enquanto ele observava o cadáver, a noite se instalou completamente. Às vezes, era perturbador, a chama da lamparina criava a ilusão de que o corpo se mexia.

Passados alguns minutos, levantou-se e foi até a janela. As árvores balançavam. E vendo a tempestade cair, íngreme e perene, inundando o meio-fio, desejou estar sob os pingos grossos, sentindo a brisa, a roupa encharcada. Viu duas sombras, mal protegidas sob um guarda-chuva, e pensou que talvez fossem os donos da quitanda, o casal que diariamente o espreitava, evitando-o por algum motivo.

De repente, a janela tremeu e um helicóptero infestou a rua com seu jorro de luz, revelando dois furgões que corriam e espalhavam ondas de água suja. Ao mesmo tempo, a sirene de uma viatura da polícia explodiu no encalço dos automóveis. Mas o ruído das hélices logo se transformou num ronronar inofensivo, e as luzes coloridas que haviam tingido as casas perderam-se na lonjura…

— Carlinhos…

Certo de que a mãe o chamava, assustado, ele se virou na direção da cama.

— Desculpe — ela disse em voz baixa, percebendo o que havia feito.

A claridade do corredor, embrenhando-se pela porta aberta, desenhava a silhueta de Marta, quem havia acompanhado a longa doença da amiga, vestindo, por fim, o corpo prestes a endurecer e maquiando o rosto repleto de manchas.

Depois de fechar a porta, ela sussurrou: — Você está bem?

— A chuva não pára, Marta… A funerária vai demorar muito… — Carlos se aproximou, abraçando-a. — Mamãe vai fazer tanta falta… — quase recomeçando o choro, ele a cingiu com mais força e se aninhou entre os seios, descobrindo ali o perfume da mãe.

— Calma… Ela descansou… Você me prometeu que não ia mais chorar… Você já é um homem… Ninguém queria que ela continuasse a sofrer… — afastando-se um pouco, Marta ergueu o rosto do rapaz e o beijou no canto da boca.

— Você é tão boa… — sem perceber que ela desejava abraçá-lo novamente, ele se voltou para a cama. — Nunca imaginei que ia ser assim… Nunca… — e irrompeu num choro quieto, manso. Marta o enlaçou pela cintura e, quase beijando a nuca coberta de suor, disse, com uma ponta de ironia: — Você vai ser feliz com seus tios…

— Eu nem sei quem é essa gente! — ele reagiu, desvencilhando-se dela. O monótono cair da chuva envolvia o mundo de sombras no qual o cômodo submergira. Demonstrando impaciência, numa voz contida, Marta respondeu: — Sua mãe deixou tudo preparado, você sabe.

Antevendo as mudanças que viriam e das quais era impossível escapar, ele observou a mulher se dirigir à janela, o corpo soberbo, os seios agressivos ganhando novos contornos a cada passo, os quadris largos que, há algum tempo, chamavam sua atenção. Mas parecia irritada agora. Olhando-a, imaginava se a havia decepcionado. E antes que ela tocasse o vidro, perguntou: — Por que eles nunca vieram aqui? Por que mamãe nunca disse nada sobre eles?

— Seus tios vivem muito longe, no interior — voltando-se, determinada, ela caminhou na direção de Carlos. — Gente simples, mas boa — concluiu, num tom de desprezo.

— Eu não quero ir… eu não quero…

— Não quer, mas precisa — estendendo os braços, ela o puxou para si; e ele escondeu o rosto nos seios perfumados, cruzando as mãos nas costas de Marta, como se implorasse para ficar… Mas após alguns segundos de silêncio, suspeitou que algo havia mudado no comportamento dela, pois a tensão irradiava-se pelos músculos da mulher, tornando o abraço frio, impessoal. E antes que pudesse agir, sentiu as unhas se enterrarem em seus cabelos, quase a ponto de feri-lo, a boca que se colava à sua, a língua forçando a entrada.

Apavorado, ele tentava se defender, mas ela completou a armadilha, passando um dos braços por sua nuca e, com o outro, prendendo-o pela cintura. A língua de Marta vasculhava sua boca, até que, lutando, conseguiu empurrá-la.

A mulher que parecia ter subitamente crescido se reaproximou, no entanto, maliciosa, sorrindo. Enfiou os dedos por entre os botões da camisa de Carlos e o fez sentar na beirada da cama. — Não gosta do meu beijo?… Meu menino… — mas ele se retraiu para dentro do colchão, até ser barrado pelo corpo da mãe.

— Você não me quer, é isso? — zombando, segurou-o pelos cabelos e o trouxe para perto do rosto. — Mas eu quero você! — Carlos gemia e tentava se agarrar ao vestido da morta. — Sua mamãe ia se divertir vendo nós dois… — sacudiu a cabeça do garoto, largou-a abruptamente e o esbofeteou. — Você sempre foi um nojentinho! Sua mãe sempre te protegeu… Agora chega! Chega! Entendeu bem?! — e enquanto ele chorava, deu-lhe um empurrão, fazendo suas costas baterem no cadáver. — Sua mãe era uma idiota… Não sabia lidar com os machos dela. Por isso morreu assim, podre e sem grana… Você não sabe quem foi sua mamãe, não é mesmo? — apoiou as mãos na cintura, assumiu um jeito professoral e, sem esperar resposta, rindo, exclamou: — Sua mãezinha foi uma puta! — e empinando os seios, oferecendo-os, prosseguiu: — Fomos colegas de profissão…

Numa atitude majestosa, cheia de orgulho, pôs o pé direito na cama e contou duas ou três histórias sujas da falecida, mas era como se Carlos não ouvisse, pasmado, emudecido pela fala sórdida. — Ah… não fique triste, meu lindinho… Ela curtiu bastante, apesar da burrice. O que importa — Marta fazia trejeitos, numa falsa docilidade —, o que importa é que nós estamos aqui, juntinhos, e você vai ser meu.

O rapaz esboçou um gesto de fuga, mas ela se ajoelhou sobre ele, prendeu o corpo franzino entre as coxas e, com incrível agilidade, abriu o zíper da calça, enfiando a mão no interior da cueca. Ele se debatia inutilmente, pois a cada tentativa de levantar, era empurrado contra a morta. — Huuummm… vamos… quero isto aqui bem durinho, meu amor… — e começou a mordê-lo no pescoço e nos ombros, apertando o membro entre os dedos. Enlouquecida, rasgou a camisa do garoto e cravou os dentes nos mamilos. Carlos gritava; e ela, rindo, imobilizando-o com uma das mãos, percebia a carne crescer sob a outra.

Sentindo as costas se esfregarem na rigidez da morta, em pânico, Carlos pensava somente que a mãe assistia a tudo, acompanhando cada gesto, cada gemido.

Libertando-o, Marta ergueu a saia e mostrou, no meio dos quadris, uma região onde as sombras da noite se concentravam. — Vim preparada pra você — grunhiu num tom falso, arreganhando as pernas e finalmente engolindo o rapaz, enquanto ele urrava, como se a carne da mulher possuísse dentes. Vendo Carlos dividido entre a repulsa e a volúpia, a chacoalhar o corpo da mãe no mesmo ritmo do seu, ela cravou as unhas na pele virgem e sacudiu as ancas ainda mais. Ao perceber que ele gozava, Marta analisou o garoto por um momento e, encostando seu rosto no dele, disse uma única frase.

A chuva não havia esmorecido quando Carlos se viu sozinho no quarto, tomado de estupor, envolto pela fragilidade que acomete os machos após o orgasmo. Deitado aos pés do cadáver, ainda podia escutar, por entre o barulho da tempestade e o golpe de metal do portão que se fechava na rua, as palavras de Marta: — Só fiz o que sua mãe me pediu.

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho