Tradução: Rogério Pereira
Não escrevo para o inconfundível Rascunho desde minha estada em Las Grutas. De lá para cá, nada de novo. Na minha idade, esta é a forma do suplício de Tântalo: quer-se o novo e no ato de lhe por a mão, ele se esvai, como o tempo.
Não posso, a esta altura da vida, experimentar mais do que a filosofia, a contemplação pura e simples que me compensa da dificuldade atual para mover-me. A coluna em má forma, as pernas meio travadas: sobram-me pensamentos. Andei conversando ao telefone com uma amiga, filósofa brasileira que conheci em Porto Alegre há uns 15 anos. Moça esperançosa, insiste que há na filosofia efeitos práticos. Entendo. E não concordo. A filosofia nos ajuda a não fazer, a não ser e a não estar. Eis a teoria que um dia irei comprovar para desgosto de minha amiga, pessoa preocupada com a transformação do mundo. Sobretudo, o que me importa agora é que, assim como a filosofia era para Boécio uma consolação, para mim é a minha pocilga.
Desde que voltei daqueles dias ao calor do sol, continuo a contemplar meus porcos, pais e filhos. Deixo a Noe a tarefa de alimentá-los e cuidar de sua saúde. Crescem e engordam. Vejo que cresce o piau, beleza de oveiro! Pena estar sem forças de chegar perto deles, ver como agem uns diante dos outros, esperar que me vejam e me olhem nos olhos. De dentro de casa, onde me encontro, consigo ver tudo, mas pedi a Noe que, indo à cidade, traga-me um binóculo, uma luneta que permita acompanhar a pocilga sem esforços extenuantes. Devo guardar minhas forças para ler os livros que o seu Pereira me manda e para escrever de um modo que não atrapalhe o meu estabanado tradutor. Esse tal Zamora que o Pereira me arranjou, muitas vezes me irrita a ponto de me despertar a úlcera (quero ver como traduzirá o que digo aqui!!!). Dona Eneida traz-me um leite de magnésia, eu choro as pitangas e sigo contemplando a pocilga.
Mas não posso reclamar tanto. Chegou-me este Jogo de varetas, de Manoel Ricardo de Lima. Pedi a dona Eneida que investigasse quem era o rapaz. É professor de literatura, escreveu outro livro, de nome As mãos (não tive a oportunidade de ler, mas dona Eneida garantiu-me que é uma beleza). Tenho visto que, de um modo geral, os professores escrevem bonito, com riqueza estilística e lexical. Temi que fosse didático, mas nem um pouco. Durante um tempo de minha vida como professor, tive vontade de estabelecer uma teoria geral da formação do escritor: verifiquei que jornalistas escrevem como redatores de notícias, artistas plásticos escrevem como quem pinta um quadro, médicos escrevem como quem observa uma ferida. No entanto, percebi que a formação (letras ou direito, artes ou jornalismo), interfere apenas no que menos importa no ato de escrever: a palavra é apenas a casca da literatura. É preciso haver ferida para que haja casca. É disso que se trata ao escrever, de um buraco aberto que purula e sangra. Um buraco na alma.
Mesmo que cada um esteja condenado à sua própria experiência e, portanto, à sua formação, não é ela que faz escrever. Antes, é um olhar para o mundo em que as palavras servem como linha de costura para a sutura da ferida que é viver. Por isso, os autores que escrevem a serviço do entretenimento (seja os que escrevem livros para servir a filmes, seja os que contam historinhas dramáticas que cuidam de não ofender os leitores) me irritam, pois banalizam a escrita, ela mesma banal em certo sentido, desde que é a base democrática da cultura humana. Mas literatura não é democracia neste sentido besta de algo bom porque compreensível à maioria. Ela não é a mistificação fascista das massas na qual muitos tentam transformá-la.
Literatura é criação do espírito. Confiarei até a morte que a literatura não se torne o mero serviço a que tantos querem vê-la reduzida. Confio que permaneça sendo a experiência do conflito humano com a solidão. Confio que seja aquilo que me mostram meus porcos todos os dias: que há de chafurdar na lama mesmo quando a lama é invisível. Quero dizer com isso que confio que o escritor seja um condenado à morte que se ocupa em ler e escrever ao pé do cadafalso. E pelo motivo, ele mesmo precário, de entender a precária condição humana. Eu, na posição de miserável crítico, contento-me com a única coisa que a supera em estranheza e sublimidade: a condição porcina.
Penso tudo isso lendo Jogo de varetas. Livro que me animou desde o começo quando, à guisa de prólogo, li uma Ameaça. São 24 contos, para não entrar na discussão do que sejam cada um dos acontecimentos literários que temos ali sob 24 títulos… Achei esta parte da Ameaça uma coisa espantosa. Roubaria para mim se fosse escritor. Por sorte, sou apenas o crítico que, em sua miséria, não precisa ser muito criativo. Verdade que, levando em conta o que fazem por aí atualmente, até não sou dos piores, embora saiba que muitos me consideram um velho ranzinza. Mal sabem que é minha melhor qualidade. Mas deixemos isso para lá. Agora tenho que jogar varetas.
Metafísica da pocilga
A Ameaça significa que os contos, as varetas do jogo, são de madeira e, farpadas, podem ferir. Não são de plástico. Isto é que é, conseqüentemente, o importante. Os textos aos quais servem de analogia não são de plástico, ou seja, não servem como pura estética, como mero entretenimento. São jogo e são, de certo modo, joguinho. Mas joguinho perigoso. Joguinho infantil, passatempo desafiador, assim como o vive a criança, a única que entende dos brinquedos, de seu perigo e seriedade. E só quem é criança — como eu que já estou velho — sabe como dói perder o jogo. E como anima a destreza, a vitória por sobre o arranjo sutil em que a gravidade das coisas mínimas se confronta com a espessura do mundo tornado palco de uma brincadeira. Foi por isso que me alegrou jogar o jogo, tirando uma por uma cada varetinha: cada conto. Gostei do jeito como o autor as deixou, umas varetinhas mais fáceis, outras mais difíceis. O leitor pode tirá-las aleatoriamente, pode quebrá-las, ou seja, ler pela metade, ou ter sucesso na empreitada conseguindo não tocar em outra. Ou pode, desastrado como um adulto que perdeu a paciência de jogar, pôr fora a chance de ser subjetivamente feliz.
Os contos/varetas são curtos sob o ponto de vista do número de páginas, mas longos do ponto de vista da experiência que sinalizam. Os personagens quase nunca têm nome (exceto em O lugar da atenção, em que encontramos Jeremias, Raimundo e Marcocésar, e em Todos os dias, quando o céu aparece, que tem um personagem chamado Oito e um interlocutor igualzinho a ele). Quando isso de não batizar as coisas acontece, é que o escritor quer dizer algo universal: é ele mesmo que se apresenta, “ninguém” que ele mesmo é, enquanto, como nós mesmos (seus leitores), ele é todo mundo. Gosto disso. Detesto a realidade das coisas na literatura, aquela descrição do real confundido com a pretensão de algo verdadeiro. Prefiro a concretude das idéias e dos personagens que, sem nome de batismo, falam deles mesmos enquanto falam de nós, ou de nós enquanto falam deles mesmos. Só assim é que se atinge o estranhamento, a arma da literatura, capaz de nos salvar a alma mortificada debaixo de um mundo transformado em plástico.
Os narradores de Jogo de varetas têm a sinceridade das crianças e dos velhos. Mais um pouco e seus personagens seriam porcos, de tão perfeitos. Chegaremos lá! As ações são como as de jogar varetas: não servem para nada. Sinalizam o absurdo da vida, assim prazeroso, mais sublime do que belo, por ser justamente absurdo. Credo quia absurdum para lembrar todos os dias.
Há um conto, dentre muitos, que demonstra isso que digo. Trata-se de Uma dor nos ombros. A dor de ombros não é fácil de ver. Ela não está lá. Quem comparece é um queixoso narrador oculto que reclama de alguém — ou será ele mesmo — que foi embora. Parece que é isso. O tema é algo como a “exata medida do excesso” que aparece grifado no texto. Em cena há o cão e a couve no carrinho do supermercado de uma dona que foi às compras. A relação entre o cão e a couve é uma questão das mais sérias. Como a que vejo entre meus porcos e o milho, na qual vislumbro eu mesmo a “exata medida do excesso”. Tentei explicar isso a dona Eneida, bem como a Noe, os dois me olharam, como o cão e a couve, no conto de Jogo de varetas. Não sei se consigo deixar claro como é preciso que o conto não se explique e que a medida do mistério nele é totalmente inexata, como se uma desmedida se anunciasse com a armadilha de que em algum ponto se expresse a “exata medida do excesso”.
Enquanto o cão e a couve interagem à sua maneira, alguém vai e volta cansando o narrador que poderia ter algo melhor a fazer se não tivesse sido condenado à narração. É a primeira vez em minha vida que conheço o prazer do cansaço. O cansaço que este narrador me dá de presente me conforta a mim que, lendo o cão e a couve, entendo a metafísica da pocilga com a qual me confronto todos os dias na sombra da árvore frondosa da vida.