A memória é o espelho no qual contemplamos os ausentes. A idéia, que me atravessa, não é minha, mas do pensador francês Joseph Joubert (1754-1894). Estou sempre a reler seus Pensamentos e, quando faço isso, tenho a sensação de que eles me pertencem. De que sou eu, e não Joubert, quem pensa. Eles são o espelho no qual reencontro idéias que nunca tive mas que, no entanto, me constituem. Eles se tornam minha memória — memória daquilo que tenho, mas esqueci que tenho.
Diz Joubert: “A memória. É um espelho que guarda, e guarda para sempre. Nele não se perde nada, nem nada se apaga. Mas se embaça. Não se vê nada”. Sua escrita tem um ritmo quebrado e imprevisto. Não usa a pontuação clássica; escreve como os poetas, que, em vez de pontuar, respiram. Hiatos, intervalos, vazios. Eles repetem o ritmo da memória, que se faz de ondulações, golfadas e esquecimentos. Todo espelho, de vez em quando, se embaça, e também essas zonas escuras fazem parte da memória.
Gosto de ler Joubert, ainda que muitas vezes dele discorde, porque suas idéias me provocam. Penso em suas provocações não como afrontas, ou injúrias, mas como desafios. Provocar também significa: causar, produzir, gerar. Seus pensamentos me transformam. E o que mais se deve esperar de um pensador? O pensamento — imitando a memória, já que dela é feito — traz à cena o ausente. A literatura me ensinou a não acreditar no pensamento puro, ou impecável. A não lhe atribuir valor. A preferir a lacuna.
Não: o pensamento que me interessa é aquele que convoca personagens desprezados, ou ocultos. Aquele que desnuda e desvela, ainda que seja para exibir outro véu. Pensar para chegar à verdade? Joubert me ensina que, mais do que pela verdade, o pensamento se interessa pelo prazer. Volto a seus escritos: “A ilusão ou o jogo. Existem ambas as coisas em tudo o que é agradável”. Ao contemplar o ausente no espelho da memória, escolhemos, de certa forma, a ilusão. Mas, diz Joubert, ilusão e jogo são os elementos do prazer. Da alegria de viver. Não se desgrudam.
É nesse ponto que Joseph Joubert, o católico, se encontra com Pier Paolo Pasolini, o cineasta ateu. Um ateu místico, é verdade, mas ateu. Ontem à noite, revi Pocilga, um de seus filmes que mais admiro. Estava a reler Joubert e, com a vista cansada, decidi me apoiar (como um cego) em Pasolini. As palavras de Joubert e de Pasolini se embaralharam dentro de mim. Não me importo com isso: detesto ser meu próprio inspetor de ensino. Elas formaram uma espécie de sonho intelectual, que não deixa de ser a essência de todo pensamento. Sim, o pensamento está atravessado pelo sonho; é impossível pensar sem sonhar. Ambos nos prometem a verdade, mas nesse aspecto os sonhos são mais sábios. Em dada cena de Pocilga, já perto do desfecho, está a frase síntese: “Mas qual é a verdade dos sonhos, senão nos deixar ansiosos pela verdade?”.
É aí, na ânsia pela verdade — procura de um lugar a que nunca se chega —, que Joubert e Pasolini se encontram. Encontram-se e alçam vôo. Ânsia sem ansiedade. Sem angústia. Ânsia que é mais uma elevação. Um sonho também. Que é não aflição pela verdade, mas desejo de verdade. Jogo, portanto. Pasolini tinha o poder de arrancar das cenas mais detestáveis uma imensa beleza. O filho que é devorado pelos porcos enquanto o pai festeja uma nova sociedade comercial, em suas mãos, se torna a imagem perfeita não de uma derrota, mas de uma entrega. Enquanto o pai (herói de um mundo consumista) devora seu banquete, o filho se deixa devorar. Se deixa afetar.
São vozes que se acumulam em minha mente. Dentro de mim, como em um precário teatro, Joubert e Pasolini se põem, então, a conversar. Faço de suas idéias minhas idéias. De seus pensamentos, meus pensamentos. Volto a Joubert, que jamais se iludiu com a hipótese de auto-suficiência do pensamento: “O cérebro é como um depósito de água; não devemos confundi-lo com a fonte”. Somos formados pelo que lemos. Pelo que experimentamos. Pelo que devoramos. Como o personagem triste de Pasolini, em vez de devorar, somos devorados. Os melhores pensamentos, em vez de nos achatar com seu peso, nos fazem voar.
Nada disso exclui a ânsia pela verdade. Repito Pasolini: os sonhos nos deixam ansiosos pela verdade. Joubert dialoga com ele: “Vocês chegam à verdade através da poesia e eu chego à poesia através da verdade”. A poesia não é qualquer coisa. Não é beleza inútil. A poesia é uma busca. Um vôo em direção à verdade. Vôo interminável, e essa é sua verdade. Leiam Joubert, revejam Pasolini e talvez entendam isso.
Volto, uma vez ainda, a Joubert: “Não gosto da filosofia (e sobretudo da metafísica) nem quadrúpeda, nem bípeda… Eu a quero alada e cantora. Que a metafísica tenha, pois, asas”. É o que um filme como Pocilga produz em quem o vê: asas e canto.
Elevação e prazer. Vida, para usar uma só palavra.