Libido aos pedaços, de Carlos Trigueiro, é um romance sedutor. Nada despedaçado, ao contrário, é uma sinfonia de vozes que emanam de um narrador perspicaz, cuja ironia atravessa a história dos clássicos e bate à porta da contemporaneidade com força monumental.
Não quero ficar em adjetivos, não posso estragar o silêncio que antecede e sucede a leitura desta obra-prima. O título instiga, a capa seduz, a divisão em pedaços, e não em parágrafos, nos avisa: há algo novo nesta embalagem romântica.
Nada mais romântico do que um analisando louco pela analista. E nada mais óbvio. Mas o óbvio nunca foi fácil de ver ou escrever, ainda mais quando não se restringe a um caso de amor, se disseminando em poesia e filosofia.
Loucura envolvente
O enredo de Libido aos pedaços arrasta o leitor para o inferno mental de um protagonista que tenta imprimir no papel a sua angústia e indignação diante do amor negado, mote para incontáveis ilações a respeito das relações humanas.
Se o leitor mais analítico desejar, encontrará nesta obra um manancial poético raro, ou talvez único, na literatura brasileira de escritores vivos. Permito-me uma digressão: certa vez um professor de literatura da Unicamp me escreveu: “não opino sobre literatura de autores vivos, é um risco muito grande”. Se eu me alinhasse a esta postura, estaria cometendo um crime, ainda mais se tratando de Libido aos pedaços. Aliás, não consigo me calar sobre este livro, desejo que todos os amantes de literatura o leiam, pois sei o quanto vão se encantar.
O narrador, Otávio Nunes Garcia, tenta delinear uma identidade para si a partir da relação que mantém com a analista Larissa. Identidade que tange os inúmeros aspectos da existência e das relações humanas, mas ao invés de convergir para um retrato, se reproduz multiforme pelo infinito que a linguagem poética possibilita. São estas as palavras de Otávio sobre o assunto:
Mas quem pode assegurar que modelos, gêneros, tipos, peças, engrenagens, funções e variações de comportamento são exatamente como seus verbetes descritivos nas enciclopédias? Nesta altura do meu prontuário, acho melhor respirar, dobrar a dose de uísque e procurar nos acervos da memória a identidade, ou melhor, o verbete descritivo de Otávio Nunes Garcia.
Se fôssemos pensar numa fórmula mágica, eu diria que porções de Nelson Rodrigues, Machado de Assis e Oswald de Andrade seriam essenciais à composição de Libido aos pedaços. Otávio, o narrador antropofágico, devora seus antepassados e os ressuscita na sua Confissão. Ele encontra na escrita o caminho para tentar esquadrinhar a paixão, a moral, o sexo, a psique, com os lápis da poesia e da filosofia. As frases a seguir são mostras mínimas do rigor do estilo e da ironia afiadíssima do escritor: “Pessoas de bem preferem a hipocrisia ao escândalo”, “Dizem que culpas ruminadas amplificam a voz da consciência”, “Minha sensibilidade não tem a concisão dos chips nem a indiferença dos códigos de barras”.
São frases pinçadas do Primeiro pedaço que podem ser encontradas em abundância por todo o romance — aliás, frases como estas são, na verdade, constituintes do texto de Carlos Trigueiro, da linguagem corrosiva de um narrador alucinado, porém capaz de exprimir sua loucura de maneira organizada, didática e envolvente.
Eu não conhecia o autor, nem de obras, nem de nome. Encantada pelo livro, entrei em contato com ele e minha primeira pergunta, sem rodeios, foi: “Como você conseguiu escrever um livro como este?”. Ele me respondeu: “Levei dez anos”.
Claro que o tempo de trabalho não é o único responsável por tamanha ousadia, mas demonstra a seriedade, a vontade do autor de ir além das saídas fáceis, do romance palatável e atingir o orgasmo criador.
Eu imagino que Carlos Trigueiro tenha tido orgasmos múltiplos durante e ao concluir seu trabalho. Como leitora, ainda estou na fase do encantamento. É quase insuportável aceitar sua grandeza, mas é impossível invejá-la — ela supera todos os obstáculos humanos, toda a nossa degradação e miserabilidade, e se impõe aos vivos e aos mortos como arte genuína, merecedora de prêmios e reconhecimento por parte de leitores, críticos e demais responsáveis pela construção da cultura brasileira.