Tatiana Salem Levy

A literatura é isso, Tatiana: traição. Série interminável de erros, que nos arrastam e nos prendem.
Tatiana Salem Levy, autora de “Vista chinesa”
01/12/2008

Cara Tatiana,

Foi com grande espanto que li seu A chave de casa. É um susto e uma alegria descobrir uma estreante tão segura de seu caminho. Você sabe o que faz (literatura) — e o faz muito bem. A história da chave é uma forte provocação. Um homem abandona a casa, em Esmirna, na Turquia, e migra para o Brasil. Décadas depois, já velho, entrega a chave da casa, que nem sabe se existe mais, para uma neta. A moça, sua narradora, Tatiana, decide usar a chave para descerrar a história do avô e, em conseqüência, a sua própria. Faz, sozinha, uma viagem de volta a Esmirna. É nesse retorno que avança.

Ocorre que o passado, justamente por ser passado, não existe mais. Tudo o que lhe resta, então, é a chance de reconstruí-lo. Seu romance é essa reconstrução. Perdoe-me: quando o resumo assim, Tatiana, na verdade mutilo seu livro. Romances não admitem sumários, ou guias de viagem. Enquadrados (enjaulados) em sinopses, como as pobres feras nos zoológicos (que de lógicos nada têm…), em vez de se mostrarem, se desfiguram. Seu romance ultrapassa o domínio do pessoal. A história da antiga chave que não se encaixa em fechadura alguma, mas que, só por existir, promete abrir todas as portas, é, para a mim, a história da própria literatura.

Dias antes de ler seu livro, Tatiana, um grande amigo me passou um trecho de uma entrevista de Koellreutter, o músico alemão. Ele fala de sua “antipedagogia”. Mal avancei nas primeiras páginas de seu romance, Tatiana, e logo as duas idéias se juntaram: seu livro (a literatura) é uma “antipedagogia”. Diz Koellreutter que a “antipedagogia” se pauta por três preceitos fundamentais. Não existem valores absolutos, só valores relativos. Em arte, o erro não existe, só importa inventar o novo. Por fim, os alunos não devem acreditar em nada do que o professor diz, em nada do que lêem e em nada do que pensam. Tudo o que lhe cabe fazer é perguntar “por quê?”.

Avancei na leitura de seu romance, Tatiana, e a “antipedagogia” de Koellreutter não me saía da cabeça. Em seu livro surgem, uma a uma, as lições (ou “antilições”) do compositor. O leitor abre as primeiras páginas de A chave de casa e logo supõe que o livro seja uma confissão. Os dados biográficos da narradora coincidem com seus dados biográficos, apresentados na orelha e no material de divulgação. A descrição que ela faz de si se repete em sua fotografia estampada na orelha do livro: olhos de azeitona, nariz comprido, boca pequena.

Certezas deslocadas
E lá vai o leitor — lá fui eu — certo (ou desejando acreditar) que lia uma confissão. Mas logo essa certeza se estraçalhou. Já na página 18, a mãe, que estaria morta, fala. As certezas começam a se deslocar. A narrativa vacila. A narradora conserva nas mãos sua chave. Deverá tomar a sério o pedido do velho, de que volte para Turquia e reabra seu passado? Será mesmo um pedido que ele lhe faz, ou só uma provocação, uma armadilha?

“Acredite nessa história que seu avô lhe oferece”, a mãe sugere. “Vá em busca de sua casa e tente abrir a porta. Reconte a história do seu avô, reconte a minha também, conte-as a você mesma. Não tenha medo de nos trair.” A literatura é isso, Tatiana: traição. Série interminável de erros, que nos arrastam e nos prendem. Lembra-nos Koellreutter de que não existem valores absolutos, só valores relativos. Por que não há erro em arte? Porque em arte (em literatura) tudo é erro. A chave que o avô deu à neta é — posso pensar — a própria literatura. Ela não abre a porta que lhe foi destinada, até porque essa porta não existe. Mas abre todas as outras portas.

E é o que você faz, Tatiana. É nesse desfiladeiro que você me guia. Você está presa a uma cama, desde que a mãe morreu que não consegue se levantar. A chave, só a chave da antiga casa turca, só ela a faz se erguer e partir. Contudo, avanço na leitura e nunca sei ao certo — embora você descreva cenas cotidianas de Istambul e relate detalhes da viagem a Esmirna — nunca sei ao certo se ela (você) viajou mesmo. Você (ela) fez uma viagem para fora, ou para dentro? A literatura, isso eu sei, é uma viagem para dentro. Para escrever sua obra, Machado não precisou sair do Rio de Janeiro. Tornou-se assim, como disse Luciano Trigo, um “viajante imóvel”. Nenhum escritor precisa se mover para escrever. Não se trata de mover-se, mas de abalar-se. Agitar-se diante da força das palavras.

Então, tanto posso acreditar que você chegou a Esmirna, como posso acreditar que não chegou. As páginas se desdobram e, quanto mais avanço, menos sei o que leio. Quanto mais leio, mais inseguro e perplexo estou. Mas também: quanto mais leio, mais fascinado me sinto. Ler é desequilibrar-se. E fazer do desequilíbrio uma espécie de dança.

A mãe tenta atenuar o peso que a filha carrega nas coisas. “Por que levar tudo para o lado da dor?”, ela pergunta. “Por que sempre assim, desde pequena?” A narradora é firme em sua resposta: “Se não sangra, a minha escrita não existe. Se não rasga o corpo, tampouco existe. Insisto na dor, pois é ela quem me faz escrever”. As relações entre escrita e dor, Tatiana, muitas vezes parecem exageradas. Forçadas demais, falsas. Outras vezes, são tomadas como uma apologia do sofrimento. Mas não: o leitor (eu) avança e, no desenrolar das páginas, sente a dor que é, no fundo, o que o prende ao que lê.

Não só uma dor quase física, aquela que os grandes livros desferem sem nenhuma piedade. Mas, sobretudo, a dor sem corpo do desamparo. Sua narradora diz: “Não sei até que ponto são verdadeiras as histórias do meu avô, até que ponto é verdadeiro o que vivo agora. Nem mesmo sei se é verdadeira a minha viagem”. A verdade, em literatura, é outra coisa. O escritor verdadeiro — se é que tal figura tão completa existe — é aquele que (como você mesma, já nesse primeiro romance!) sustenta com vigor e sem ceder a sua própria voz.

Além dos fatos
Em muitos momentos, sua narradora (você?) ainda tem a ilusão de que a literatura é um caminho para a verdade. Nessas horas, ela luta para se apegar aos fatos, para não se deixar levar por fantasias, para não “voar” e afastar-se do largo chão da realidade. Mas ela mesma diz: “Parece que quanto mais me aproximo dos fatos mais me afasto da verdade”. Em nosso mundo pragmático, Tatiana, ligamos sempre os fatos à verdade. Um jornalista, por exemplo, quer apenas fatos e mais fatos, nada além dos fatos! Tudo o que deseja é um bom acontecimento. Um naco suculento do real! O escritor, porém, quer outra coisa: esse rombo que sob os fatos se abre e que, no fim das contas, é o que nos move.

Sua narradora, lá na frente, agora cheia de raiva, diz: “Essa viagem é uma mentira: nunca saí da minha cama fétida”. Mentira? Já avancei bastante na leitura, a história me envolveu, o livro já existe dentro de mim. Como mentira? Um livro só existe na cabeça do leitor, dizia Roa Bastos. Só quando alguém o lê (nele entra) ele se torna verdadeiro. Seu livro existe agora em minha cabeça, Tatiana, e é essa a única leitura (precária, parcial, nervosa) de que disponho. Só nela posso acreditar.

Já a poucas páginas do desfecho, o leitor se defronta com uma declaração espantosa: “Com raiva, com ódio, jogo a máquina de escrever no chão e rasgo todas as folhas escritas. E também as brancas, para não correr o risco de continuar escrevendo”. O golpe, em quem lê, é duro: “Mas, então, que livro é esse que agora leio?” — é obrigado a perguntar. As palavras da narradora desmentem sua narrativa. Anulam-na. O livro não está onde devia estar — ou, melhor: está onde não devia estar. A literatura nunca é aquilo que julgamos que ela é. E você, Tatiana, já no primeiro romance, não só prova que sabe disso, como tira partido disso. E, assim, remexe na vida não para imitá-la, mas para reinventá-la.

Seu livro é uma afiada armadilha, que arrasta o leitor para seu alçapão. Todo o tempo, o leitor (eu) pisa em falso. Não vou negar que, nos primeiros baques, me incomodei. Depois entendi que o que você me oferecia era, enfim, a própria vida. Não cintilante e inteira, mas torta e esmigalhada pela imaginação. A vida não como ela é (que isso ninguém sabe), mas simplesmente como nós a vivemos.

Um abraço de seu leitor, José Castello.

A chave de casa
Tatiana Salem Levy
Record
208 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho