Publicado originalmente em 1992, O desatino da rapaziada, de Humberto Werneck, narra as venturas e desventuras dos escritores e jornalistas mineiros — estirpe à qual pertence o autor da obra — entre as décadas de 1920 e 1970. Neste 2012, para comemorar os 20 nos de sua publicação, o livro ganha nova edição pela Companhia das Letras.
Tendo como personagens figuras como Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Otto Lara Resende e Fernando Sabino, entre outros autores, e os inúmeros jornais e revistas fundados e extintos nas Minas Gerais, O desatino da rapaziada é uma fonte preciosa de informação sobre pessoas e fatos que marcaram a vida intelectual brasileira no século 20. Não obstante sua importância factual, o livro brinda o leitor com a prosa precisa e bem-humorada de Humberto Werneck, mineiro que na década de 1970 trocou a terra natal pela portentosa São Paulo, onde vive até hoje.
Na entrevista a seguir, Werneck comenta o fato de Minas Gerais ter dado origem a tantos bons autores, fala sobre a escrita do livro e tambĂ©m sobre o “revival” mineiro que o mercado editorial brasileiro vem proporcionando aos leitores.Â
• Vamos começar com uma pergunta à la Carmen Miranda: O que é que Minas Gerais tem? Inúmeros grandes escritores brasileiros nasceram lá. Muitos deixaram a cidade e adotaram Rio de Janeiro e São Paulo como lar, mas por que Minas Gerais deu origem a tantos bons autores?
É verdade: estatisticamente, Minas Ă© berço de razoável quantidade de escritores. Por que esse, digamos, fenĂ´meno? Talvez porque lá nĂŁo houvesse, no passado, muito o que fazer. Na falta de vivĂŞncias mais variadas, muitos, quem sabe, iam viver no papel. E quando saĂam disso, nem sempre se davam bem — vide aqueles poetas entre os inconfidentes, revoltosos, que pensaram em tudo, atĂ© numa bandeira, menos na compra de uns trabucos para enfrentar o colonizador portuguĂŞs… O fato Ă© que, havendo fartura de escribas, vários deles, por ação de presença, serviam de exemplo para as gerações que iam chegando, o que levava Ă sua multiplicação. Brincadeiras Ă parte, Ă© interessante notar como as gerações literárias mineiras, a partir do Modernismo, meio que se engatam umas nas outras, sem necessidade de ruptura para abrir espaço. Provavelmente tem a ver com o tal espĂrito conciliador do mineiro, que teria sido moldado pela geografia: já que estamos aqui entre as montanhas, obrigados a conviver uns com os outros, vamos tratar de nos entender. No passado pode ter sido assim. Hoje, acho que nĂŁo mais. O mineiro parece ter descoberto que existe vida fora do papel…
• Quanto tempo foi necessário para escrever O desatino da rapaziada? Como foi a recepção do livro na época?
O desatino da rapaziada nasceu de uma idĂ©ia do poeta Antonio Fernando De Franceschi, na Ă©poca Ă frente do Instituto Moreira Salles. Ele me proporcionou uma bolsa durante sete meses, alĂ©m de uma infraestrutura para a pesquisa. Praticamente tudo foi feito naqueles sete meses, no ano de 1991. Eu estava na chefia da redação da sucursal paulistana do Jornal do Brasil, e lá escrevia, todas as manhĂŁs, entre 7h e 9h30, horário em que me reconvertia em jornalista. Nos fins de semana, escrevia direto. NĂŁo pude esperar que a pesquisa estivesse concluĂda — ia fazendo enquanto pesquisava, porque o livro tinha que estar pronto para a inauguração da Casa da Cultura em Poços Caldas, marcada para agosto de 1992. ConcluĂdo, o copiĂŁo teve, alĂ©m do Franceschi, trĂŞs leitores excepcionais: o jornalista Geraldo Mayrink, que nĂŁo sĂł bolou o tĂtulo como se encarregou das legendas do caderno de fotos, tendo contribuĂdo ainda com o saboroso texto de orelha; o historiador Francisco IglĂ©sias, tambĂ©m meu amigo, ajudando a checar mais do que fatos e datas; e Otto Lara Resende, que, página por página, fez preciosas correções e observações. Lançado em agosto, O desatino foi recebido com muita simpatia pela crĂtica e pela imprensa (me levou pela primeira vez ao Programa do JĂ´, por exemplo, ainda no SBT) e pelos leitores.
• Pelas histórias que você conta, imagina-se que várias outras tiveram que ficar de fora. Como foi o processo de selecionar o que seria publicado?
Felizmente, havia fartura de material, e creio que o melhor chegou ao livro. Acho que aquilo que é bom tem que entrar, pelo simples fato de ser bom, e que vale a pena batalhar para que as inserções pareçam pertinentes e naturais. Minha narrativa, que cobre os anos de 1920 a 1970, é basicamente cronológica, mas isso não me obriga, como contador de histórias — O desatino é uma crônica, no sentido de relato histórico —, a me escravizar ao fio que avança no tempo. Vou e volto, antecipo coisas que virão mais adiante, de forma que a narrativa freqüentemente envereda por isso que chamo de “aliases”, umas estradinhas, umas picadas que se abrem a partir do tronco principal do texto. O importante — isso aprendi com a Sherazade, minha santa padroeira — é seduzir o leitor e mantê-lo cativo até o ponto final.
• VocĂŞ conviveu com vários dos escritores citados no livro: Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Murilo RubiĂŁo… Como era a relação entre esses autores e as gerações que vieram depois deles (inclusive a sua)?
Para mim e para alguns outros jovens escritores da minha geração, o grupo formado pelo Fernando Sabino, o Paulo Mendes Campos, o Otto Lara Resende e o HĂ©lio Pellegrino foi uma referĂŞncia muito forte, e nĂŁo apenas literária. O encontro marcado, do Fernando, nĂŁo era sĂł um texto no qual procuramos aprender truques narrativos, e mesmo, no nosso verdor, a imitar escancaradamente. A gente sabia que ali estava a histĂłria de quatro talentosos conterrâneos nossos que brilhavam nacionalmente. A certa altura, na adolescĂŞncia, eu queria ser um deles, num Rio de Janeiro que sempre me fascinou, longe da pasmaceira e do moralismo da vida belo-horizontina de entĂŁo. Como escritores, a gente conhecia pouco o Otto Lara Resende, atĂ© porque publicava pouco, e quase nada o HĂ©lio Pellegrino, que nĂŁo publicava nada a nĂŁo ser poemas em jornais, de quando em quando. O Fernando e o Paulo a gente tinha nĂŁo sĂł em livros como toda semana, como cronistas da revista Manchete. Custo a crer que a cada sete dias tĂnhamos crĂ´nicas desses dois e mais o Rubem Braga, o maior de todos, e, de quebra, o Henrique Pongetti, mais fraquinho. Quanto ao Murilo RubiĂŁo, figura misteriosa de quem mal ouvĂamos falar — alĂ©m de ser muito discreto, tinha passado em Madri a segunda metade da dĂ©cada de 1950 —, sĂł fomos descobri-lo em 1965, quando saiu Os dragões e outros contos. No ano seguinte, ele criou dentro do Minas Gerais — o insĂpido diário oficial do governo mineiro — um Ăłtimo suplemento literário semanal. Murilo, o intelectual mais generoso e tolerante com quem já cruzei, abriu as páginas desse suplemento para jovens escritores e artistas plásticos, ainda que a produção nĂŁo batesse com o seu gosto pessoal. Entre 1966 e o começo dos anos 1970, enquanto esteve no comando, Murilo RubiĂŁo fez do suplemento mineiro um chĂŁo onde puderam reunir-se grupos ou autores isolados.
• Nos Ăşltimos tempos, a literatura mineira vem recebendo excelentes notĂcias: reedições de livros de Jaime Prado GouvĂŞa, Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade; obras de Fernando Sabino e Otto Lara Resende ganhando novos projetos gráficos; vocĂŞ e Ivan Angelo publicando novos livros de crĂ´nicas; alĂ©m de novas edições de obras de Paulo Mendes Campos. Como vocĂŞ vĂŞ essa espĂ©cie de “revival” mineiro?
Dos escritores que vocĂŞ citou, todos — menos um, claro, este entrevistado, por sinal nada modesto — tĂŞm obra sĂłlida que já se mostrou capaz de resistir Ă passagem do tempo e dos modismos literários. Mas acho que ainda nĂŁo se deu o devido reconhecimento ao romancista CornĂ©lio Pena, por exemplo. Está faltando levar a mais gente a obra pequena porĂ©m notável de Jaime Prado GouvĂŞa, apenas dois livros, lançados pela Record porĂ©m mal divulgados — Fichas de vitrola e outros contos e o romance O altar das montanhas de Minas. Falta, tambĂ©m, editar de maneira menos amadorĂstica os notáveis livros de ficção do Ivan Angelo, em especial o romance A festa, as cinco novelas de A casa de vidro, a novela Amor? e os contos de A face horrĂvel.