Arqueologia de si mesmo

O francês Édouard Louis (re)constrói a história da sua família, marcada pela violência e pela ausência de afeto
Edouard Louis, autor de “Quem matou meu pai”
01/01/2024

And when you want to live
How do you start?
Where do you go?
Who do you need to know?
Morrissey

“Talento é sorte”, escreve Woody Allen em Manhattan, um de seus melhores e mais importantes filmes. “O que importa mesmo é coragem.” Em seus dois livros mais recentes, o francês Édouard Louis confirma que tem ambas as características. Quem matou meu pai — uma afirmação — e Lutas e metamorfoses de uma mulher continuam o projeto que Louis começou com O fim de Eddy e História da violência: transforma a sua própria vida em matéria-prima para o fazer literário, algo que o faz pertencer à linhagem de Annie Ernaux, por exemplo.

Toda a literatura de Édouard Louis é a arqueologia de si mesmo: uma busca centrífuga de entendimento de mundo. Tanto assim que em O fim de Eddy, narra a dissolução de sua própria identidade, a transformação de Eddy Bellegueule — o sobrenome em uma tradução literal significa rosto bonito — para Édouard Louis. Abandonar seu nome de batismo é a primeira de muitas rupturas que irá tensionar. Depois, História da violência é um mergulho sombrio e lírico em uma experiência-limite: o estupro e a tentativa de assassinato de que foi vítima na véspera do Natal de 2012.

Louis é jovem, nasceu em 1992, mas parece ter se jogado no mundo de uma maneira única, e não como mero espectador, mas como alguém capaz de ler e interpretar a realidade singularmente. A sua literatura reflete a necessidade de observar tudo ao seu redor e devolver um olhar a partir do self. Seguindo os passos do cineasta Jean-Luc Godard, a literatura de Édouard Louis que não aceita meios termos, que não se contenta com o que já está posto, ao contrário, precisa promover o desconforto, o incômodo e a interrupção do fluxo comum das coisas.

Por isso, quando escreveu Quem matou meu pai não permitiu que essa fosse uma pergunta, pois a resposta já está ali, dada, porém, escondida. Partindo da complexa relação com um pai abusivo, ausente e homofóbico, o livro tenta reconstruir a dissenção do elo familiar. O homem que outrora era alegre e gostava de receber os amigos e dançar havia se transformado em um sujeito amargurado e violento, que reprimia a sua emoção e os seus sentimentos, assim como o de toda a família. Ao narrar a brutalidade dessa relação, Louis humaniza alguém que, por anos a fio, vivia sob uma forma monstruosa da existência.

E ao mesmo tempo em que nomeia cada uma das violências e humilhações que sofreu desse pai, o autor o perdoa e o revela em uma névoa de fragilidades sociais acachapantes — o que alivia a gravidade de todos os traumas que produziu na família, mas traça um itinerário, por exemplo, do olhar conversador de um homem massacrado pelo governo. A gota d’água é um acidente de trabalho que destrói de vez o seu corpo e a sua saúde. Nesse ponto, o pai está cada vez mais envolvido com a bebida e com a impossibilidade de ser e estar no mundo. Enquanto definha, leva tudo à sua volta consigo e faz da decadência uma narrativa particular, íntima, como se fosse parte intrínseca de estar vivo ou, ao menos, existindo.

Louis, desde criança, sentia o peso dessa relação: fosse num “show de mentira” durante um jantar para amigos, em que o menino cantou Barbie girl, deixando o pai constrangido, fosse na languidez com que voltava para casa da escola. O medo e a vergonha são o legado dos Bellegueule e, quem sabe, isso não explica o porquê da troca de nomes.

No dia do show de mentira, fui atrás de você lá fora, você fumava compulsivamente, estava sozinho, de camiseta, fazia frio, a rua estava deserta e a ausência de barulhos era quase infinita, eu sentia o silêncio entrando pela boca e pelos ouvidos. Você olhava para o chão. Eu dizia: Desculpa, papai. Você me abraçou e disse, Não foi nada, não foi nada. Não se preocupe, não foi nada.

O ressentimento e a culpa, de ambos os lados, também povoam os espaços que separam pai e filho. E tudo isso está na construção da narrativa, uma carta kafkiana dirigida ao pai. Diferentemente do tcheco, Édouard Louis não sentia apenas medo, mas compaixão, tentando entender o que estava por trás de toda aquela agitação negativa. A narração é povoada de datas ou marcações temporais que situam o leitor no tempo e no espaço, que ajudam a conceber também um senso rítmico.

Círculo de imperfeições
Dentro de casa, Louis tinha uma amostra do que vivia na escola: a violência e o bullying despertados pela sua homossexualidade, a intriga diante do que é desconhecido. A família, que morava em uma cidade pequena, vivia sob a égide dos costumes do pensamento raso e da negação de tudo o que não é perfeito dentro daquele pequeno círculo de imperfeições. Esse era o modus operandi da região, como se fosse imprescindível estar em um mundo sem mudança, sem qualquer alteração, sem coisa alguma que pudesse trazer o mínimo sinal de perigo. O resultado de toda essa equação de traumas é a solidão, que Louis sofria todos os dias.

Quem matou meu pai é uma obra assombrosa, triste e comovente, porém, consegue estabelecer um pensamento sólido acerca da maneira como as crianças veem o mundo. Escutando o podcast Projeto humanos: O caso Leandro Bossi, que tenta desvendar o assassinato de uma criança em Guaratuba (litoral do Paraná), cujo corpo foi encontrado não muito longe de onde acharam o cadáver de Evandro Ramos Caetano, é impossível não pensar que Louis também poderia ter sido vítima de algo parecido.

Claro, uma coisa não tem, necessariamente, a ver com a outra, entretanto, o silêncio das crianças parece revelar o que a sociedade pós-moderna e líquida guarda de pior. E essa é a sensação amarga da literatura de Édouard Louis, de que sempre existe uma selvageria escamoteada sob o verniz das convenções e da hipocrisia e que, de um jeito ou de outro, leva tudo para o buraco.

Arquitetura da simplicidade
Se Quem matou meu pai é uma tentativa de retomar uma relação rompida, Lutas e metamorfoses de uma mulher é uma carta à mãe, também visceral e ainda mais emotiva, pois, assim como Louis, ela também foi uma das vítimas de um homem que marginalizou a si mesmo. E é engraçado como o escritor vai revelando os fatos mais íntimos com uma naturalidade intensa, ainda que o leitor perceba que, em realidade, está testemunhando a abertura de uma caixa de Pandora.

Mais uma vez, Louis está em uma caça arqueológica, revirando o passando para tentar dar conta do presente. “Tudo começou com uma foto”, escreve logo na primeira linha. Ora, esse é o método que Ernaux também se vale. Em A outra filha, a autora — vencedora do Nobel de Literatura em 2022 — usa uma fotografia como estopim para investigar o passado da irmã, que morreu anos antes que ela nascesse. Ernaux e Louis são arquitetos da simplicidade, parte de questões cotidianas para chegar a profundidades abissais.

Os dois fazem dos seus livros cartas e testemunhos, uma ação deliberada de dar voz a um mundo de excluídos. Tanto um quanto outro também se distancia do melodrama fácil, da banalidade do sofrimento e da baixeza das intrigas familiares. Louis, quando escreve sobre a mãe, fala sobre uma mulher soberana que, a despeito de todas as cicatrizes — muitas delas do primeiro casamento, antes de se encontrar com Bellegueule — sonha em voltar a viver.

Lutas e metamorfoses de uma mulher vai explorando os aspectos sinuosos de uma família em degradação e, simultaneamente, a inocência de um menino em formação. Dessa junção, o leitor se depara com cenas que entrelaçam o cômico e o melancólico, algo que Elena Ferrante havia também encenado em Um amor incômodo, sobretudo quando a filha se sente excitada durante o velório da mãe.

Louis, porém, consegue dar vida a uma cena, esta real, tão dilacerante quanto a de Ferrante:

Um dia eu falei, diante de toda a família reunida, que adoraria que srta. Berthe, professora de história da escola, fosse minha mãe. Eu devia ter onze anos. Meu irmão mais velho, que estava comendo ao meu lado, se assustou: Não se deve dizer essas coisas, é errado!

Antes dessa cena não fazia ideia de que era errado querer outra mãe.

Como se vê, Édouard Louis tenta encontrar os limites da ética familiar, da necessidade de colocar os papéis sobre a mesa e, cada um a seu modo, interpretá-los. Em alguma medida, tanto Quem matou meu pai quanto Lutas e metamorfoses de uma mulher são a síntese dos encontros e desencontros da vida real, do colapso equivocado dos ideais e da sensação torpe a respeito do que é a vida nas cidades. No caso da família do autor, a libertação só acontece quando a mãe joga todas as roupas do pai porta afora e não o deixa entrar novamente. O pai, entendendo o que está acontecendo, não insiste, a mãe, lutando contra si mesma, vai em frente e, mais tarde, encontra outro homem e se muda para Paris.

É engraçado porque, apesar de ter vivido sempre na mesma região, somente quando passa a habitar a capital é que deixa de se sentir uma estrangeira. E é a primeira vez em que se sente realmente quem é.

Quem matou meu pai
Édouard Louis
Trad.: Marília Scalzo
Todavia
72 págs.
Lutas e metamorfoses de uma mulher
Édouard Louis
Trad.: Marília Scalzo
Todavia
112 págs.
Édouard Louis
Nasceu em Hallencourt (França), em 1992. É conhecido por seu impactante trabalho literário que aborda questões sociais, identidade e classe. Seu primeiro romance, O fim de Eddy (2014), oferece uma visão penetrante de sua experiência crescente em uma família operária no norte da França, explorando temas como homofobia e pobreza. Seu trabalho é elogiado pela crítica por sua honestidade e impacto emocional.
Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

Rascunho