— Pra que serve isso aí?
Lenice suspirou fundo como quem se prepara para uma longa explicação. A menina mantinha os braços cruzados desde que entrara em casa.
— É uma vitrola, antigamente era assim que ouvíamos música. A gente coloca os discos para tocar, o som sai por aqui ó — as mãos um pouco trêmulas apontaram a caixa de som.
— Mas por que você ainda tem isso?
Lenice balbuciou algo como “eu gosto, eu escuto sempre”, mas Raquel já tinha virado as costas e perambulava pela sala. Sentou-se no sofá, pisando com o tênis no estofado azul-turquesa. Lenice fixou o olhar nos pés da garota.
— Você quer ver meus discos?
Raquel bufou, levantou-se com a rapidez que só aos doze é possível e colocou-se ao lado dela. Por um instante os cotovelos das duas chegaram a se tocar; Raquel se afastou um pouco dando um passinho em diagonal para trás. Lenice abriu uma grande gaveta em que os discos estavam organizados verticalmente por ordem alfabética; um ou outro fazia com que ela se detivesse — “há quanto tempo eu não escuto esse…”, “esse daqui é especial, veja!”. A menina espiava as capas, em seguida buscava qualquer coisa no céu lá fora, ainda não havia explorado a varanda.
— Essa capa aí é legal, a loira com asa de anjo e esses cabeludos. Parece um grafite que eu vi no muro.
Lenice retirou o disco com cuidado e a menina agarrou-o, lendo com dificuldade: “Mu-tan-tes”. Depois ergueu as sobrancelhas e encarou Lenice; em vez de oferecer alguma explicação, ela retirou o vinil e colocou para rodar no aparelho. A menina seguiu com o olhar as mãos da mulher apertando e girando botões:
— Você é muito branquela.
“Dizem que sou louco por pensar assim/ Se sou muito louco por eu ser feliz…”
Lenice aumentou um pouco o volume. Com uma careta que entortou o rosto, Raquel foi ao mesmo botão e girou até o final:
— Música só é boa muito alta!
Lenice tapou discretamente os ouvidos, aos poucos foi retirando os dedos; aguentou até o final, cantou — “eu sou feliz…” —, levantou a agulha e sorriu.
— No abrigo você podia ouvir música nessa altura?
— Não, no abrigo não deixavam nada. Mas onde eu morava antes, cada um ouvia o que queria ao mesmo tempo e bem alto.
— E não dava briga? — Lenice perguntou já rumo à cozinha.
— Dava, sim. Facão, garrafada, tiro até. Muito mais legal do que aqui.
A menina estalou os dedos, sentou desta vez no chão, próxima ao corredor e disparou:
— E se eu colocar fogo na casa?
Lenice quebrou no meio o sorriso, encarou-a:
— Seria uma pena porque nós duas ficaríamos sem ter onde morar.
A menina abaixou a cabeça entre as pernas. Lenice deu um passo meio dançante e abriu a geladeira, apanhou o filé mignon para fritar — queria fazer um belo bife à parmegiana com batata. Pela manhã, foi questionada pelo açougueiro do supermercado por causa da quantidade pedida em dobro: “Dessa vez vai receber alguém?”. A resposta entalada dava-lhe um gosto amargo na boca. Há anos comprava o mesmo tanto de carne, no mesmo lugar, toda segunda-feira, para passar a semana. Cortou com precisão o bife, a faca afiadíssima — “na certa ele deve ter pensado que eu arrumei um namorado no Tinder. E falado: aquela baleia achou alguém!”.
— Tem algum lugar aqui para eu ficar sozinha?
Raquel não esperou pela resposta e seguiu pelo corredor, até encontrar a porta com o enfeite pendurado — dois passarinhos angelicais sustentavam pelo bico o seu nome bordado, adorno típico de porta de maternidade.
Lenice fez o jantar em silêncio. Depois chamou a menina, e nada. Comeu só. Caminhou até a porta do quarto, fechada. Colocou a mão na maçaneta, retirou antes da ação. Bateu. Nem sinal. Estaria dormindo? Pensou em ligar para Mariana, a amiga cuja filha mais velha tinha a idade de Raquel. Apanhou o celular e tornou a deixá-lo na mesa — isso seria já de saída colocar-se em posição inferior, ou ainda supor que uma pessoa sabe sempre como enfrentar problemas com os filhos biológicos, o que, como qualquer um sabe, é mentira.
— Eu só quero avisar que o jantar está pronto — Lenice coloca as mãos na porta, afagando a madeira. E insiste:
— Se você quiser, é só esquentar um pouco no micro, eu te ajudo.
Por fim a menina abre. Parece que diminuiu de tamanho, está tão criança agora! O cabelo preso, uma mecha caindo em caracol de cada lado.
— Depois eu como. Ainda não estou com fome, mãe.
Paralisada, Lenice não sabe o que fazer com aquela palavra. Quer vesti-la feito uma roupa, mas tem medo de o tecido rasgar, não servir em seu corpo imenso. Quer engoli-la, mas dessa forma a palavra perderia sua natureza, desdobraria em outra, se emendaria em frases. Então escolhe isto: nada. Fica apenas admirando as três letras boiando no ar, subindo pelas paredes da casa, agora delas.