Uma visão panorâmica da atual literatura brasileira mostra um cenário de mesmice que, parece, se eternizará. Cenas urbanas, violência gratuita, linguagem empobrecida, cortes urgentes e secos, fórmulas que se repetem de maneira cansativa e muito pouco criativa. Este fascínio doentio pelo cotidiano urbano e idealizado tem uma certidão de nascimento, os contos escritos a partir do início da década de 1970, quando o país estava irreversivelmente urbanizado e com novas variantes de caráter. Retratar este novo homem foi uma decisão acertada e até ousada.
O problema é que, depois de quase quarenta anos, houve mudanças estruturais profundas em nossa sociedade que não estão sendo vistas, ou pelo menos trabalhada, pelos ficcionistas. Em outras palavras, a contemporaneidade está muito além de um telefone celular, uma quitinete, uma cena urgente, uma notícia de primeira página. E em nome dela, da contemporaneidade, um oceano de subliteratura tem sido produzida.
A grande questão é saber até que ponto se pode ser criativo mesmo atendendo aos caprichos do mercado literário. Ou seja, as editoras pedem a mesmice sob o argumento de que isso vende. Como fugir do cerco e chegar ao público? Um bom exemplo da fuga é o livro Da loucura dos homens & outros escritos, de Rodrigo de Faria e Silva. O que se revela neste pequeno livro alenta o leitor atento e justifica todo nariz de cera dos parágrafos anteriores. Vamos a ele, ao livro.
Sua estrutura é muito simples, um longo conto, Da loucura dos homens, e cinco outros textos menores. A unidade se dá pela linguagem bem elaborada. São frases que, pela presença de ritmo e de sentido, resgatam o sabor da literatura.
Chorar na frente dessa mulher foi meu primeiro grande erro, pois uma mulher, por mais forte que seja, não tem força para suportar um homem fraco. Invariavelmente medem força conosco e nos apaixonam, pois sabem que com isso tiram nossas proteções e nos deixam mais vulneráveis. No entanto, mais fracos não admitem.
Assim, fazendo seu texto extremamente claro e direto, Faria e Silva segue a lição de Graciliano Ramos. A palavra foi feita para dizer e não para enfeitar.
No longo conto, quase uma novela, inicial há uma outra unidade, a discussão das relações entre homens e mulheres. O enredo conta a vivência de um homem com as mulheres — nove ao todo — de quem guarda alguma lembrança. Estas lembranças, no entanto, são sempre doídas. Começa com a menina que lhe nega o beijo conquistado depois de vencer uma proeza e chega à adolescente com quem se envolve na meia idade. Todas lhe deixaram marcas.
Canalha romântico
O interessante é que tudo joga o leitor para o encontro com um Casanova qualquer, mas nas entrelinhas surge a verdade de sua personalidade, um canalha romântico que caminha pela linha oposta dos heróis de Nelson Rodrigues. O personagem de Faria e Silva é o boêmio irresponsável que se regenera assumindo, por influência política, um emprego no Banco do Brasil, um típico retrato do filho da alta classe média que se fez nas últimas décadas do século passado. Um retrato que se adensa exatamente pela leveza da narrativa. Embora o texto traga uma indiscutível sofisticação, tudo se diz de maneira clara e direta. Enfim, estamos diante de um homem que não mediu esforços em sua traçada trajetória de canalha, mas que por isso foi vingado pelas mulheres. Salve elas.
Esta necessidade de discutir as relações humanas a partir do doce conflito entre homem e mulher permeia os outros textos. Na verdade, eles ampliam os sentimentos do conto — novela? — inicial. Prenhe de razão, Nelson de Oliveira afirma no posfácio que “Da loucura dos homens é a coletânea de casos em que o amor e o tesão atacam o metódico projeto masculino de reinar pela razão e pela força física”. E claro está que não se refere apenas ao texto que dá nome ao livro. Nos outros cinco contos esta relação se adensa como instrumento de poder e ambição. Há até um passeio pela surrealista cabeça dos colecionadores que, na visão do autor, podem juntar cheiros ou mulheres.
A verdade é que o autor trabalha com o homem de seu tempo e daí pode sair os sentimentos mais absurdos. Tudo se passa como forma de jogo constante. Mexer cada pedra do tabuleiro dá o sentido pleno de uma existência, afinal aqui se vive entre paixões e alumbramentos nascidos da visão primária de uma mulher ou de uma arte.
Rodrigo de Faria e Silva construiu um livro breve, curtíssimo até, mas que em seu todo encerra uma visão amplificada do homem moderno. Um homem que vive de paixões, mas que não se desfaz de seus objetivos de domínio, embora nem sempre consiga realizá-los. Enfim, falando de um mundo novo, conseguiu fugir de nossa enfadonha mesmice literária.