Os subúrbios da morte. Assim é descrito um matadouro na região central do Brasil, principal cenário de Onde pastam os minotauros. Cão, Crente e Lucy, funcionários do abatedouro, adentram todos os dias um ambiente hostil. Na escrita de Joca Reiners Terron, figurações que vão de metáforas à mitologia moldam a trajetória do trio protagonista. O romance combina elementos aparentemente opostos, como o realismo de denúncia social e uma tradição antirrealista, que dialoga com o caráter surreal da literatura.
Em Onde pastam os minotauros, acompanhamos os bastidores de uma rebelião trabalhista. A temporalidade entrecortada da trama, um trunfo de Terron para manter o suspense, revela os dilemas dos personagens. Lucy preocupa-se com Cão. Já ele, solto há pouco tempo, após uma temporada na prisão por tráfico de drogas, questiona a moralidade por trás do emprego no matadouro. Crente sente culpa pela morte da esposa e pela doença da filha, acometidas pelo coronavírus.
No decorrer da narrativa, torna-se claro que o plano do trio é tanto um modo de se libertar da exploração dos patrões, cujo poder se expande para fora do matadouro, quanto uma vingança pelo ciclo de violência, fruto da busca pelo lucro e da própria acumulação capitalista, processo condensado por mais de uma geração. A exportação de carne para o Oriente Médio — enquanto a população regional padece de fome, vale acrescentar — é também um dado interessante, visto que Ahmed, um trabalhador mulçumano, é parte central da rebelião. A partir disso, o plano ganha ares cinematográficos.
Os limites entre humanidade e animalidade são colocados em questão. Esse elemento vem à tona principalmente com Cão. Além da associação evidente, presente no nome do personagem, suas reflexões conjugam imagens em que os dois universos se interpenetram. O romance confere consciência aos bois — oferecendo, inclusive, a possibilidade de reflexão sobre o mito do Minotauro a partir de seu ponto de vista.
Seria simplista, entretanto, afirmar que Onde pastam os minotauros perscruta faces da irracionalidade humana. É mais do que isso. Com seu enredo, Terron problematiza estruturas enraizadas. Assim, aspectos do capitalismo como o lucro e a exploração desenfreada são vistos com estranhamento — com um reminiscente teor freudiano, o familiar torna-se infamiliar.
A animalidade é evocada também com a figura do Minotauro, presente desde o título do romance. No mito grego, ele é uma criatura monstruosa, cujo corpo humano sustenta a cabeça de touro. O Minotauro é uma punição de Poseidon, uma vez que o rei Minos nega o pedido do deus para sacrificar um belo animal, abatendo outro no lugar. Ofendido, Poseidon faz a esposa do rei, Pasífae, apaixonar-se pelo touro, dando à luz o Minotauro, monstro que viveria preso em um labirinto.
A aproximação do romance de Terron com o mito grego revela as veias grotescas da trama. Isso se dá, em primeiro lugar, pela mistura de planos — como o humano e o animal. Em suas origens, o termo grotesco refere-se à pintura ornamental antiga em que elementos humanos e inumanos, como do reino animal e vegetal, são justapostos e combinados. Mas Onde pastam os minotauros paira também sobre acepções modernas do grotesco, uma vez que há a tentativa de trazer o sublime para as pequenas vidas do abatedouro, acostumadas ao ambiente terreno e mortífero.
Antirrealista e surreal
A proposta do livro, que dialoga com um caráter antirrealista e até mesmo surreal da literatura, pode ser um ponto de destaque, tendo em vista um cenário editorial inundado pelos mares da autoficção ou do realismo puro — aquele que se contenta com a realidade objetiva e suas implicações. Belos trechos, em que a aura de devaneio toma conta dos personagens, revelam a potência da escrita de Terron.
Os possíveis hermetismos e divagações metafísicas não afastam o leitor do teor social do romance e da profunda meditação que ele provoca. Escorre pelas páginas de Onde pastam os minotauros uma denúncia tão aguda quanto as que víamos em nossas obras de 1930, vide a acumulação do capital de Paulo Honório, o avarento fazendeiro de Graciliano Ramos em São Bernardo. Além da conhecida crítica ao lucro e à exploração capitalista, juntam-se temas como as consequências da pandemia para os mais economicamente vulneráveis e, espanta-se a atualidade, os conflitos do Oriente Médio.
Onde pastam os minotauros dialoga com as principais tradições da literatura brasileira, o que faz do romance uma amálgama narrativa, em que coexistem problemáticas sociais e sua consequente aspereza, um intenso lirismo, figuras de linguagem e a mitologia grega. Quando combinados, esses elementos elevam o potencial do livro. Eventuais excessos, tanto figurativos quanto a ênfase em mazelas sociais, passam despercebidos no conjunto, que resulta em uma bela fábula.
A sutil experimentação formal, que manipula as regras estritas do romance a partir da incorporação de elementos da lírica, é evidente. Ainda mais interessante é o movimento das palavras, com a disposição do texto, passando pelo uso de outros componentes gráficos. Não é exagero dizer que há um desenho da trama. Sem dúvidas, um jogo estético que acrescenta ao romance mais uma camada: a sobreposição entre prosa poética e a objetividade prosaica.
A inventividade de Terron culmina em um enredo ousado, estilhaçado no tempo, cuja consciência paira para além da realidade concreta. Isso merece ser louvado, em uma época em que a literatura estritamente factual parece estar levando a melhor. Surge, assim, um realismo particular. A mensagem do romance — se é que há (apenas) uma — está entregue. Resta na lembrança do leitor os capítulos labirínticos, uma batalha mitológica entre o lirismo e a crueza cotidiana.
Este talvez seja o maior acerto de Onde pastam os minotauros. É de se esperar que a crítica já tenha superado a necessidade de colocar rótulos em livros. Um bom romance, muitas vezes, não se deixa limitar. Joca Reiners Terron concilia elementos aparentemente opostos, desaguando em um romance que nos recorda o encanto do ficcional — e o quanto a imaginação espelha denúncias profundas. Muitos são os labirintos: os corredores do abatedouro ou a própria forma da narrativa. Não há lugar seguro ao leitor. Ao fim, o livro nos evoca os contornos do Minotauro, uma combinação inusitada, um estranhamento. Mas quando se trata de literatura, estes pastos costumam render bons rebentos.