Em 1997 ou 1998, tive a sorte de Wagner Carelli e Joaci Furtado, editores da Globo, me convidarem para organizar a edição das suas obras reunidas. Percebi logo que a edição seria importante porque, até então, Hilda Hilst apenas publicara as suas obras em editoras artesanais, ainda que excepcionais, como a de Massao Ohno, que tinham distribuição muito limitada. E era também importante para recolher e reunir um conjunto de obras que sequer a própria Hilda possuía. Muitos de seus livros, com pequenas tiragens, acabavam desaparecendo de sua biblioteca — hoje, felizmente depositada no Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (Cedae), da Unicamp, junto com os seus manuscritos e primeiras edições — tudo devidamente catalogado, conservado e disponível ao público, como deve ser. Os seus muitos leitores de agora, certamente teriam surpresas e emoções feéricas se fizessem uma visita ao Cedae para conhecer os seus papéis, cadernos e desenhos.
Vendo como as coisas são hoje, é até difícil imaginar que, antes da primeira década deste século, Hilda Hilst era pouco conhecida e ainda menos estudada. Claro, ela contava com alguns leitores fiéis — como sei que é o caso, aqui mesmo no Rascunho, do José Castello. Havia exceções honrosas, mas, em termos de reconhecimento amplo, Hilda Hilst passou quase toda a sua vida ignorada. O seu verdadeiro sucesso de público e de crítica veio apenas quando ela já estava numa idade avançada e com a saúde bastante abalada.
Digo isso porque me lembrei de uma cena muito curiosa que se passou em algum dia de 2002, quando fui visitá-la na Casa do Sol, em Campinas. Por essa época, os livros da coleção da Globo já começavam a ter alguma repercussão e acabavam de receber o Grande Prêmio da Crítica, da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Hilda então havia me pedido que fosse sozinho receber o prêmio, pois ela já não se sentia bem para fazer o deslocamento até São Paulo. E enquanto conversávamos, brincando, sobre o que eu deveria dizer no discurso de agradecimento na tal cerimônia da APCA — que ela afinal resolveu com um simples “diga-lhes que mandei um beijo” —, ela também me disse, de repente, um pouco consternada, que era uma pena que apenas agora, quando já não podia gozar de coisa alguma, ela finalmente começasse a ser reconhecida.
Fiquei um pouco surpreso com a frase, pois Hilda raramente entregava os pontos, e, na observação que ela fizera, era impossível não reconhecer alguma tonalidade melancólica, não sem mesclá-la com a habitual ironia. Nada era menos usual nela do que a melancolia, ao menos na relação comigo, e então, sem saber o que falar, observei, em contraponto, que alguém como ela, que falava diariamente com os espíritos dos mortos, e que acreditava, portanto, na imortalidade da alma, o tempo de uma só vida não era nada: ela ainda tinha a eternidade para gozar da própria glória.
Curiosamente, para quem sempre tinha uma piada sacana a tirar da prontidão do espírito, ela me olhou de uma maneira nada irônica, e disse com os olhos postos fixamente em mim: “Mas eu acredito realmente na imortalidade?”.
Na hora, a pergunta me perturbou, pois era duplamente estranha: primeiro, porque o núcleo da obra de Hilda eram narrativas ensaísticas e versos em torno de uma espécie de mística poética, de interrogação de Deus — me lembro até de uma vez em que escrevi um texto para Estar sendo, ter sido, no qual fazia uma descrição radicalmente niilista do livro, e de ela não ter gostado nada disso: “Mas onde está a minha preocupação com Deus?”, me disse. A pergunta também era estranha, em segundo lugar, porque, do modo como ela a formulou, me olhando seriamente nos olhos, parecia que ela realmente esperava de mim uma resposta sobre as suas crenças mais íntimas, o que era rigorosamente absurdo. Em que eu poderia ajudá-la em suas próprias buscas mais pessoais? Tateando então, uma maneira de não estacar nessa espécie de aporia enigmática e melancólica, justamente num momento de alegria e comemoração, lhe disse qualquer coisa irrelevante e tranquilizadora, que eu prometia reler toda a sua obra para lhe dizer depois em que ela acreditava ou não — o que ela aceitou de bom grado, talvez para não me constranger, talvez porque ela própria não estava acostumada a se abrir assim comigo.
Mais tarde, entretanto, guiando de volta para casa e pensando sobre a nossa conversa, me pareceu que aquilo que Hilda me confessou como sendo uma dúvida sobre a imortalidade incluía dialeticamente um gesto positivo de aceitação da morte, o grande problema que a assombrara desde sempre e que julgava que apenas a arte seria capaz de iluminar. E aqui cabe lembrar que um dos grandes autores de sua vida, a que recorria inúmeras vezes, era justamente o Ernst Becker de A negação da morte (The denial of death, 1973).
E aproveitando o embalo da memória, posso me gabar de ter percebido a grande escritora que era Hilda Hilst, desde ao menos o início dos anos 1970, quando ela começou a produzir a sua prosa de ficção, cuja partida espetacular se deu com Fluxo-Floema. Mas quando alguém falava com ela em grande escritora ou poetisa, ela não discutia o “grande”, e sim o “poetisa”. De modo geral, ela não admitia separação de sexo entre autores, e, por isso mesmo não queria ser chamada pelo termo feminino, que considerava condescendente. Preferia “poeta” e “escritor”. A julgar pela sua forma de pensar, se era para ser bom, teria de ser entre todos, homens, mulheres e o que mais houvesse no mundo.
Brincadeiras à parte — se bem que me parecia que ela sempre falava a sério sobre a própria genialidade —, Hilda era uma autora única, culta e inteligente, cujo convívio era usualmente muito divertido, pois ela era também uma grande humorista. Falo de humor, no sentido mais escrachado do termo: Hilda era, de longe, a pessoa mais engraçada que já conheci, ainda que muitas vezes ela gostasse do riso com dor, que Aristóteles condenava, mas do qual os autores romanos usaram e abusaram. Não raro, eu saía de sua casa, após passar a tarde com ela, com a nuca latejando de tanto rir de seus comentários geralmente abstrusos, inconvenientes e constrangedores sobre todos os assuntos. E o mais divertido era que ela os ia despejando, em sequência livre, enquanto assistia sem prestar muita atenção a programas de mondo cane na TV. Ela esperava então as 18h para abrir as garrafas de uísque ou de vinho, geralmente de baixo custo e de qualidade ainda pior, caso não fossem presentes de alguém. Antes dessa hora, ela rigorosamente não bebia.
Um amigo até me contou que Hilda lhe perguntou se ele achava que ela era bêbeda, como diziam as más-línguas, e esse amigo, muito prudente, lhe respondeu que de modo algum, já que ela bebia apenas depois das 18 horas, e isso se mantivera assim por décadas, o que era sinal claro de lucidez e disciplina. Talvez fosse assim também com a imortalidade, pensei: talvez Hilda só começasse a acreditar nela depois das 18h.