Um livro-arte não é aquele que, encontrado dentro da biblioteca de nossos avós, abria suas páginas imensas com as pinturas clássicas dos artistas de além-mar. Escritos em verbal de ave, por sua vez, é um livro-arte por excelência, porque se apropria do conceito artístico em sua composição. Nele, as palavras são como jóias de catálogo, expostas de modo delicadamente separado, permitindo a pausa necessária à sua contemplação. Nele, as palavras são conceito e semente, trazendo visões e encantos. Nele, usamos recursos visuais e táteis, para desvendar o texto devagar, como quem aprecia palavras — não por sua profusão ou quantidade — mas pelas reflexões e sensações quase corpóreas que elas podem desencadear.
Na apresentação oficial da Leya, o que orientou a composição do livro foi uma idéia bem diferente: a perspectiva era a de espalhar poemas-migalhas, 32 escritos em formato poético de haikai, próprios para leitores que quisessem alçar vôo com o personagem Bernardo, aquele que dominava o ‘verbal de ave’ sobre um grande papel-chão.
Manoel de Barros é quem resgata as memórias de Bernardo, personagem importante de diversos poemas como O Guardador de águas, Livro de pré-coisas e Menino do mato. Ele se vai, num deserto desolador, mas algo fica: sua poesia, sua inocência, uma herança de mato.
Escritos em verbal de ave então se desdobra entre folhas e texturas, contando a história desse Bernardo, um amigo, um passarinho, criatura frágil mas de sabedoria inigualável. Bernardo tinha um conhecimento anterior às palavras, anterior à reflexão — a sabedoria do mundo. “Bernardo sempre nos parecia que morava nos inícios do mundo”, “A gente via em Bernardo um visionário nas origens da Terra”, conta sua desbiografia. Bernardo é então da mesma matéria desse mundo sábio e sutil, desse nosso belo mundo que se oferece em pedras, que se admira em águas, que se desfolha em borboletas.
É um pouco antes de Bernardo morrer que o biógrafo Manoel encontra e nos revela seu acervo precioso. No mesmo baú estão alguns de seus escritos, com sua voz de fonte, sua linguagem de canto e arrebol, e também uma herança: seus desobjetos, encontrados todos após o sepultamento de Bernardo nos braços da manhã.
Antes de se iniciar o livro, Nicolas Behr adverte, poética e delicadamente: ‘A infância/ É a camada/ Fértil da vida’.
Manoel de Barros é quem vasculha essa camada fértil, encontra essa história e dá voz a Bernardo, este sim o narrador, o artista das palavras. Voz sem palavras que serve para encantar, assim como toda sua existência. E é ela que o autor busca a todo tempo reproduzir, entre murmúrios que somente se escutam no sibilar do vento.
Desdobramos ainda mais o livro-arte, entrando na história, multiplicando suas visões, cada página se transformando em mais páginas, até o seu centro essencial e sagrado, de onde emanam todas as coisas.
Nos olhos de Bernardo, brilham caracóis e lesmas, rãs e conchas, sapos e borboletas. Nos olhos de Bernardo, uma riqueza maior que a de todos os príncipes. Nos seus olhos altivos, rios entardecem, palavras gorjeiam, madrugadas oferecem silêncios, águas espelham.
Linguagem ‘brincativa’
As idéias de Manoel de Barros se voltam aos descaminhos, se lançam às alturas, abrem asas para o absurdo, e lembram que já soubemos ser ave, abandono, deserto, candura. Os livros de Manoel podem até ser para crianças, mas sabem fazer adulto lagrimar. Neles, voamos alto e reparamos que a invenção é a jóia da linguagem, que o sentimento é a semente da palavra, que a infância deixa migalhas para que possamos saber o caminho de volta.
Assim como em seus outros livros, escritos para crianças, e também para os jovens e adultos que não perderam o rumo do que há de mais verdadeiro na existência, Manoel de Barros traz um gosto de terra, a vontade de se descalçar, o desejo de retomar a função ‘brincativa’ da linguagem, a delícia do sorriso e da surpresa. Para isso, o autor abusa de substantivos e verbos, coisas e ações, e especialmente de algumas de suas preciosas visões: ‘Visão/ tem sotaque/ de nossas origens.’ e ‘Visões descobrem/ descaminhos/ para as palavras.’
Tal como pássaros, buscamos ver apenas aquilo que nos define e encanta. Tal como pássaros, faz-se necessário olhar com precisão para as raias do horizonte e desbravar feito ave cada amanhecer sobre o mar.
Como o próprio Manoel afirma, ‘Palavra abençoada/ pela inocência/ é ave.’, justo o contrário de Eva, personagem mítica e bíblica que buscou e provou o conhecimento do bem e do mal. Talvez, não fosse por ela, continuaríamos ave, sobrevoando ‘inutensílios’ e ‘desobjetos’, na comunhão original do ser com sua natureza.
O livro também se revela terra e semente. Nele, a terra está no papel ocre, a água e seus reflexos correm nas margens. Por dentro da terra-ocre, o espaço marfim-dourado de toda semente, onde se guardam idéias, visões, desejos de ser, partículas essenciais da vida.
Quando morre, Bernardo torna-se terra e semente. Afinal, toda semente é uma jóia. Quando morre, Manoel conta que Bernardo deixa algumas preciosidades: sua voz, sua herança, um inventário de poucas e estranhas coisas.
Mas, antes do fim, no breve momento antes de passar à eterna transcendência, descobrimos que Bernardo está em luto: ‘Quisera dar ao nada/ uma voz/ enlouquecida!’ e também ele — em toda sua inocência — deseja o mesmo que os poetas, a vontade eterna da permanência: ‘Queria que um passarinho/ escolhesse minha voz/ para seus cantos.’
É mesmo estranho sepultar passarinhos. É mesmo estranho sepultar. Um abandono estranho como o deserto, onde nada nasce, onde não há qualquer voz, onde não se escuta o murmúrio das águas. O único consolo de quem vai é deixar algumas sementes. A única satisfação de quem fica é catar algumas migalhas.
O prazer de ler esse livro-arte é descobrir que ainda se encontra espaço e vontade de voar mais alto, aceitando um desafio audacioso para fazer um livro totalmente reinventado, onde o mais importante não é seguir caminhos já trilhados, mas pensar livros transcendentes, lançando mão de todos os recursos visuais e táteis que as novas tecnologias oferecem. O prazer de ler esse livro-jóia é, como dito pelo próprio Manoel de Barros, esmiuçar a alma de Bernardo e assim reencontrar o melhor — o sumo e a semente — de si mesmo.