Lirismo infinito

Resenha do livro Agarra-me o sol por trás, de Tânia Tomé
Tânia Tomé, autora de “Agarra-me o sol por trás”
01/10/2012

A biografia de Tânia Tomé — em particular, um detalhe de sua biografia — fornece uma preciosa clave para compreendermos sua obra poética. Em termos cronológicos, o primeiro evento que nela surge referido é a vitória num concurso de canto organizado pela World Health International, quando Tânia tinha sete anos. Já aos dez anos, começou suas primeiras “brincadeirinhas com poesia” — “tudo função melódica”, ressalta a poetisa. E essa íntima ligação entre a poesia e a música é por ela cultivada até hoje. “A música influencia muito na minha poesia, não só nas palavras, mas na escolha das palavras que vêm a seguir”, afirma; entre suas influências, elenca nomes como Billie Holiday, Rachel Ferrel, Coltrane, Otis Redding e Baden Powell. Em consonância com isso, Tânia protagoniza um espetáculo batizado “Showesia”, apresentado como “simbiose do canto, da poesia e da música tradicional e moderna, de instrumentos tradicionais e convencionais”.

Tânia Tomé viveu a música antes de viver a poesia; mais do que isso, começou a viver a poesia através da música, como seu depoimento deixa transparecer. Aquele sarau em que, aos 13 anos, representou o personagem José Craveirinha, declamando e cantando os escritos dessa figura maior da poesia moçambicana, talvez tenha representado o simbólico momento em que a poetisa se reconheceu partícipe de uma pujante tradição à qual vinha somar sua voz. Ainda que não se tratasse propriamente de um instante fundacional, ao menos havia ali um ato de reconhecimento, um gesto em que Tânia se assumia pertencente à vasta família poética da qual também fazem parte Mia Couto, Rita Chaves, Eduardo White e Lília Momplé, entre tantos outros. Agarra-me o sol por trás (e outros escritos & melodias) surge como primeiro e necessário produto dessa relação de familiaridade — livro que chega ao Brasil pela editora Escrituras, na coleção Ponte Velha, com ilustrações do pintor e gravador cearense Eduardo Eloy.

Com efeito, é a partir da música que se deve sentir a poesia de Tânia Tomé. Seu lirismo é estruturado essencialmente a partir da dimensão rítmica, o que se torna patente sobretudo nos poemas compostos por versos longos, onde seu estro parece desenvolver-se mais à vontade, associando com precisão as dimensões semântica e sonora. Os 4 cantos da minha loucura, poema que abre o livro, é já uma demonstração disso. Trata-se de uma peça longa cuja unidade é construída, de um lado, a partir da expansão da subjetividade lírica — para quem a resposta às indagações metafísicas pode apenas ser encontrada no âmbito da experiência estética — e, de outro lado, a partir do substrato rítmico — composto com notável precisão. “Um murmúrio de vozes em uníssono no meio da noite/ desperta-me,/ os espíritos makwas kimoenes. / E o sonho meio sonâmbulo desata-se-me: / escorro, numa chuva de pálpebras,/ uma estrela azul e luminosa/ criva-me/ o peito./ Grilos, uma orquestra,/ trila na sombra./ É Deus/ que fecha os olhos na cor do espanto/ para te ver?”, dizem os primeiros versos da composição, em que já assoma a sonoridade minuciosamente arranjada, traço característico da poesia de Tânia Tomé.

A loucura, que pode aqui ser lida como sinônimo da mania sobre a qual falavam os antigos, é o que abre à poetisa o conhecimento do mundo, que se dá através do som e da palavra. E o momento em que isso ocorre é registrado no segmento final: “As janelas abro-as como se fossem páginas virgens/ e construo um castelo de sílabas com o canto das aves./ E um mundo inteiro descobre-me nestes verbos:/ o saxofone, o baixo, o piano, a bateria/ e a pentatónica/ erguendo versos, ousados, dispersos,/ figuras de estilo, metáforas, âncoras./ Ali mesmo, aqui mesmo, uma torre/ onde só existia o (des)concerto/ dos quatro cantos da minha loucura”.

É justamente este espaço para o pleno desenvolvimento rítmico do poema o que parece faltar em certas peças mais curtas, nas quais o lirismo de Tânia Tomé, muitas vezes, parece bruscamente interromper-se, como se a voz se abreviasse — embora isso não ocorra em todas as peças (não é algo que se aplique a poemas como Sons em uníssono, O verdadeiro silêncio ou Um instante infinito). Não obstante, e como novo exemplo do que afirmei a respeito da composição de abertura, cito Meu poema impossível, outro dos momentos culminantes do volume — mais um poema longo em que o andamento e a sonoridade encontram o tempo necessário para revelarem toda a sua força. Se cotejamos essa composição com Os 4 cantos da minha loucura, encontramos uma predominância de versos mais curtos, para os quais serve como medida nosso tradicionalíssimo redondilho maior; por isso o poema soa mais próximo da linguagem comum, como um discurso espontâneo que fala sobre esse poema cuja impossibilidade provém de sua completa identificação com a vivência cotidiana. “Meu poema impossível/ acordas e pé ante pé/ atravessas-me o coração/ ou lajeia-o de saudades,/ e frutos silvestres./ Acordas e vais sozinho e comigo/ onde te caem bagos dos ramos,/ doces e olorosos, se esmagados/ ou mastigados pela tristeza/ quando é impossível/ saborear a loucura/ no pomo dos dedos, lambidos/ um a um, avidamente”. Nos versos finais, escreve a poetisa: “Porque aí/ onde mais me dói escrever/ reside a alma”. Conquanto dolorosa, a escrita se impõe: é tarefa do poeta dizer o inefável que eclode da vida.

No prefácio à obra, Floriano Martins assim a apresenta para aquele que se vê prestes a percorrer suas páginas: “Esta é, como o leitor já o verá, a poesia de Tânia Tomé, a de quem se entrega à completude do labirinto, com suas artimanhas de ocultação e revelação do próprio e inconfundível motivo da própria existência”. A definição é precisa, ainda que insuficiente, como devem ser todas as tentativas de definição de uma obra poética. Como, afinal, encerrar em palavras essa poesia que se escreve como uma música infinita, que ensaia melodias a partir das vozes da tradição e dos cânticos da terra — ao mesmo tempo em que abraça o mais íntimo lirismo daquela que lhe empresta a garganta e os dedos? É onde falham as definições que a poesia revela o que traz de singular.

Agarra-me o sol por trás
Tânia Tomé
Escrituras
128 págs.
Tânia Tomé
Nasceu em Maputo, Moçambique, em 1981. Cantora, poetisa e compositora, iniciou a carreira artística aos 7 anos, ao vencer o prêmio de melhor voz no Concurso de Música organizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em Moçambique. Participante de diversos movimentos artísticos e culturais, atuou também em projetos sociais em favor de crianças e jovens de Angola e Moçambique. Sua obra está presente em antologias como World poetry almanac 2009 e The bilingual anthology on african poetry, publicado na China. Atualmente, preside a associação Showesia, com objetivo de resgatar o patrimônio cultural através de uma plataforma de interação entre o tradicional e o tecnológico/ocidental e de uma rede cultural mundial. É formada em Economia pela Universidade Católica Portuguesa.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

Rascunho