A máquina de madeira

Trecho do novo romance de Miguel Sanches Neto
Ilustração: Bruno Schier
01/10/2012

Apesar de as lâmpadas já terem sido apagadas, ainda restavam muitas pessoas no largo, os ônibus esperavam os últimos clientes para os subúrbios, e um ou outro cavalo dava mostras de impaciência, batendo a ferradura no chão ou soltando relinchos. Era bom estar na rua novamente, deixando às suas costas a exposição, pois havia sido um dia longo, que ele ainda encompridara se isolando na sala das madeiras. Fechara a sua máquina antes do final da noite, e agora olhava a silhueta dos prédios e de algumas pessoas que provavelmente procuravam o caminho de casa. Ele não tinha residência ali, mas sabia como chegar ao seu quarto. O conde de Irajá acompanhara a comitiva imperial e fora embora cedo, levado por um coche. Ele se sentia completamente sozinho na Corte, abandonando a sua máquina como um viajante guarda a mala num estabelecimento, para pegar em outro dia. Via-se amputado de uma parte essencial. De todos os visitantes, o mais interessado fora um menino. Os pais ficaram ao lado, em silêncio, enquanto ele perguntava como se fazia para imprimir as letras. Azevedo explicara o movimento da haste, a letra de metal na ponta dela, o encaixe no espaço onde estava a tinta e por fim a impressão no papel. Falava movendo o teclado para que o menino compreendesse bem. E ele sempre dizia: entendi. A cada nova explicação, repetia a mesma palavra, sem tirar os olhos do mecanismo. Ele ditou o nome para que o padre o escrevesse, e depois repetiu os versos de Os lusíadas que aprendera na escola, alegrando-se ao receber a folha impressa.

O padre mostrou como se devia ler e o jovem Antônimo Saldanha quis saber se podia guardar o papel. Sim, claro que podia. Queria ter um exemplar de seu folheto sobre a máquina para dar de presente, mas ainda não ficara pronto. Ele pegou a folha com os versos cifrados de Camões e com o nome estranho do jovem, fruto de algum erro na hora do registro, e assinou aquela tira de papel como se estivesse autografando um livro.

— Volte daqui a uns dias que terei prazer em dar o folheto.

O jovem não respondeu, mas olhou para os pais, pedindo com os olhos uma nova visita à exposição.

— Ele quer ser engenheiro — disse o pai.

Padre Azevedo também gostaria de ter estudado engenharia, e se sentiu incluído naquele destino. Ele gostara da máquina e planejava seguir uma carreira técnica. O padre, que ficara sentado o tempo todo, apenas virando-se para os visitantes, levantou-se e indicou o lugar para Antônimo.

— Experimente.

O jovem se alegrou e, sem a menor timidez, ocupou a cadeira e, com agilidade (devia tocar piano), mexeu nas teclas, pisando no pedal para mover o papel. Era para esta geração que o seu invento se destinava, pensou.

— É divertido — foi tudo que o menino disse, continuando a dedilhar rapidamente o teclado.

Quando preencheu a folha, Antônimo se levantou, apertou com força a mão do padre e foi embora com os pais, dizendo que voltaria para receber o folheto.

— Volte mesmo — disse o padre.

Que foi até a máquina e tirou o papel que o menino deixara lá. Não havia nada escrito, ele apenas apertara ao acaso as teclas, produzindo uma confusão de sílabas. Por isso fora tão veloz. Azevedo se divertiu com a atitude de Antônimo, sentindo-se pacificado nesta estréia de sua máquina.

Agora estava no largo, decidindo por qual rua voltaria ao palácio do Bispo. Pegou a rua da Lampadosa, e virou na rua da Conceição, que levava ao morro de mesmo nome. A rua tinha sido usada para conduzir as pedras para a sé. Era uma rua destinada ao trabalho. Ele andou alguns metros nela, já enxergando melhor as fachadas das casas. Casas próximas uma das outras, a rua também era estreita, para fugir um pouco ao sol dos trópicos.

Mas ali, naquele momento, não havia sol, e sim sombras. E foi da sombra que saiu uma mulher de face tão branca, embora de roupa escura, que ele se imaginou diante da morte. Ela olhou Azevedo com malícia e se aproximou quase sem tocar no chão. Ele não se mexeu. De longe sentiu o cheiro dela, um cheiro que vinha do seu sexo. Não sabia precisá-lo direito, era algo entre roupa suja e o perfume de rosas. Sabia apenas que as mulheres que faziam muito sexo guardavam essa essência, e que, mesmo sendo forte, quase insuportável, ele se sentia atraído por aquilo. Quando ela segurou a manga de seu casaco, ele tremia. Ela ergueu a mão de Azevedo e a colocou sobre o próprio peito. Era uma mão inerte. Não pressionava o seio, que devia ser mais branco do que o rosto. Ela então levou a mão para dentro do vestido e ele sentiu o volume quente.

— Vamos a uma casa de quartos?

Não havia voz nele. Os longos períodos de castidade sempre acabavam interrompidos em momentos de tristeza. Agora ele corria perigo diante da meretriz. Nunca tinha saído com uma delas. Não sabia de que forma negar o convite nem como aceitá-lo. E quando lhe faltavam palavras, quando não conseguia fazer com que os seus lábios se movessem, ele se deixava conduzir. Ela o levaria para onde quisesse e cobraria o valor que bem entendesse.

Os seus pés começaram a se mexer em sintonia com os dela, aprofundando-se na escuridão. Como seria o quarto? Suportaria o cheiro daquele corpo onde os homens chafurdavam? Hábil, ela não o puxava, deixando que ele a seguisse lentamente.

Mas surge um coche com as lanternas acenas. O casal interrompe a caminhada; talvez ela queira o outro, um homem de posses, que faz a ronda pela rua das perdidas. O cocheiro obedece a um comando de pare. Um pouco adiante, outras mulheres surgem na rua. Estavam encostadas no vão das portas. Um cliente. Um bom cliente. A meretriz de rosto lunar ainda segura a mão de sua presa, para que não fuja. O homem no interior do coche coloca parte do corpo para fora, uma das lanternas ilumina o casal.

— Senhor Azevedo! Suba. — Era Rischen.

Haviam se visto rapidamente no final da tarde e agora aquele encontro. Por sorte, devia estar ali em busca de alguma companhia também. E quando o padre pensou na palavra também, teve consciência de que ele tomara aquela rua com este mesmo objetivo, pois ficara sabendo que ali era uma das regiões em que se contratavam meretrizes. O caminho que escolhera era o do corpo das mulheres de aluguel. E Rischen tinha propósito similar, mas o dele era declarado, não precisava esconder o desejo sob um silêncio mineral. Ficara grato ao amigo por não chamá-lo de padre. Seria um constrangimento muito grande, mesmo durante a noite, numa rua escura, habitada por esses fantasmas odoríficos.

A mulher continuava segurando a sua mão, enquanto o amigo o aguardava com a porta do coche aberta. As lanternas queimavam seu combustível, com chamas ora mais intensas ora mais fracas. O cavalo respirando ruidosamente. Padre Azevedo livrou-se da moça e subiu no veículo. O cocheiro estalou o chicote e eles partiram. Os ombros dos dois homens, dentro do carro, se tocaram com o balançar do molejo. Deixavam as mulheres para trás sob um xingamento infame.

— Para onde o senhor estava indo? — Azevedo perguntou.

Sabia que o amigo viera à cata de mulheres. Havia outras vias de acesso ao lado do morro da Conceição. Não precisavam tomar a rua mal-afamada, a não ser para os objetivos a que ela se prestava.

— Vi o senhor seguindo para cá e fui atrás de um coche para resgatar o amigo.

Ele talvez estivesse mesmo numa situação de perigo e o seu rosto revelasse isso. Sim, fora salvo, não da mulher que o arrastava para o seu centro, mas de si mesmo. E o seu salvador agora conhecia um pouco mais dele, de sua alma pecadora.

— Essas mulheres, Azevedo, estão geralmente com doenças.

Ele sabia dos charcos insalubres que elas cultivavam, mas não tinha a menor razão nesses transbordamentos de desejo. Ele teria ido para o quarto com ela e se deixado sugar para aquele centro. Agora, constrangido, amaldiçoava tal vontade.

— Merecemos coisa melhor — disse Rischen.

O carro virou à direita na rua do Senhor dos Passos, duas quadras depois à direita na rua da Vala, seguindo até o largo da Carioca. No interior do coche, não se falara inicialmente de mulheres, mas da quantidade de pessoas que comparecera na abertura. Para Rischen, fora um grande acontecimento. O padre permanecia em silêncio quando o outro lhe contou sobre aquelas ruas. Era comum, disse ele, encontrar na rua da Misericórdia ou no largo do Moura botas abandonadas. Na pressa, atira-se tudo para os lados e depois de superada a urgência, na escuridão da cidade quase sem luzes, a não ser nos dias de lua cheia, ficava difícil encontrar as botas masculinas ou as botinas das damas. No outro dia, bem cedo, voltava-se ao lugar provável do encontro. Mas quando tudo se consumava dentro do coche, sempre andando por muitas ruas para não gerar desconfianças, e sendo o coche apertado, havia o risco de que uma das peças caísse e se perdesse ao longo do trajeto.

Tudo o padre ouvia com olhos distantes. Ao ouvir falar de botas, lembrou-se do odor forte do couro, igual ao do nosso corpo. Ele podia ainda sentir o cheiro daquela mulher ali dentro, e isso o perturbava. Do largo da Carioca, seguiram pela rua da Guarda Velha, passando pelo largo da Mãe do Bispo, rua da Ajuda e por fim pela rua do Passeio. Em uma verdadeira marcha, sem reduzir o ritmo, o coche vencera o trajeto em pouco tempo. Os cavalos pararam à direita, em frente ao portão do Passeio Público. Rischen abriu a porta e desceu primeiro.

— Você vai conhecer uma pension d’artistes, com as melhores francesas da Corte — e entraram no estabelecimento.

O padre sentiu um bafo de perfume e de álcool. Depois de algumas palavras que Rischen trocou com um funcionário, os dois foram levados a um quarto no andar superior. Rischen subiu os degraus de dois em dois, como se estivesse indo para uma reunião importante. A porta foi aberta e, no centro do quarto, em uma mesa redonda, duas mulheres os aguardavam, rindo. Havia uma cama atrás de um biombo com motivos orientais, e eles se sentaram com as mulheres. O padre tinha o corpo enrijecido; esgotara-se todo o desejo. As lâmpadas tremulavam com a brisa do mar que vazava as venezianas. As mulheres falavam alegremente com Rischen. E um rapaz entrou no quarto com bebida e taças. Serviu os quatro e se retirou.

— Vivam as máquinas — brindou Rischen.

As mulheres riram, achando que máquina era a palavra usada para se referir a alguma parte do corpo delas ou deles. A mais tímida colocou a mão nas pernas de Azevedo, que continuava tenso. Nem a segunda taça de vinho o amoleceu. Permanecia sem se mexer na cadeira, rindo de forma falsa para as conversas, nas quais ele não prestava atenção.

Ao terminar a segunda garrafa, Rischen apontou para o biombo e disse que Azevedo iria primeiro. Mas nem mesmo sua insistência entusiasmada fez com que o padre aceitasse tal deferência. Rischen então seguiu para a cama, a mulher negaceando por conta das investidas que ele fazia sob sua roupa ao longo do pequeno trajeto. Antes de se deitar, ela foi até a imagem de santo Antônio que ficava num nicho na parede e o cobriu com uma cortininha de veludo vermelho. E este pudor nascido da crença num futuro casamento fez com que o padre se descontraísse um pouco. Mas logo o casal começou a descrever a anatomia humana e ele se encabulou. A mulher que ficou na mesa apenas o olhava, sem se expandir, tentando talvez corresponder ao gosto do homem que lhe coubera.

No momento mais acalorado do casal atrás do biombo, o padre pediu, em voz baixa, licença para a senhorita, ele a chamou assim, ela esboçou um sorriso triste, de quem não tinha despertado o interesse, aceitando a recusa e a perda de algum dinheiro. E, com os passos de um ladrão, Azevedo saiu do quarto e desceu as escadas.

Depois de cruzar a rua e de contornar o Passeio Público, ficou ouvindo o mar e suas ondas insaciáveis.

O livro
Em meados do século 19, em um Brasil preocupado com a fixação de uma mitologia indígena e tendo como base a mão-de-obra escrava, um padre cientista sonha com instrumentos destinados à emancipação do homem pelo trabalho. Entre suas invenções, está a primeira máquina de escrever industrializável do mundo, concluída em 1859 e premiada na Exposição Nacional de 1861, no Rio de Janeiro. É este o contexto do romance A máquina de escrever, que acompanha as tentativas de modernização do Brasil e os dilemas de um homem dividido entre o sacerdócio e a ciência, entre o celibato e o amor por uma ex-escrava. Neste romance histórico, Miguel Sanches Neto coloca em cena um país que não consegue ser contemporâneo de suas melhores mentes e que, com isso, acaba ultrapassado. As inovações de Azevedo são levadas clandestinamente aos Estados Unidos, que acabam industrializando a máquina de escrever, enquanto o nome do padre é apagado da história.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho