A escrita é uma das filhas prediletas da memória.
Leonard, protagonista do filme Amnésia, de Christopher Nolan, coleciona obsessivamente polaróides com anotações atrás, pra se lembrar das coisas. Mas só as fotos não bastam. Ele também precisa tatuar no próprio corpo uma série de lembretes. Leonard sofre de amnésia anterógrada, provocada por um trauma físico, e não consegue recordar fatos recentes, que acabaram de acontecer.
Às vezes somos um pouco como Leonard. Escrevemos pra não esquecer, pra falar ao futuro. Assim surgiu essa arte tão sedutora: a escrita. Os fatos importantes de ontem e de hoje precisavam permanecer, não podiam depender exclusivamente da pouquíssimo confiável memória. Assim nasceu a História e todas as ciências. Assim surgiu a literatura.
No início os conservadores mais radicais devem ter ficado bastante desgostosos. Eles devem ter reclamado muito que a escrita mataria a memória. No célebre mito egípcio apresentado por Platão no diálogo Fedro, o deus-rei Tamuz (também chamado Amon) repreendeu o deus Thot, inventor e doador da escrita para a humanidade. O deus-rei, ao saber da terrível invenção, vaticinou que a escrita apenas fomentaria o esquecimento, pois os homens, sempre preguiçosos, deixariam de cultivar a memória.
Antes da invenção da escrita, o desenho e a pintura já auxiliavam nosso mecanismo interno de busca. Depois da disseminação da escrita, novas tecnologias analógicas de recordação surgiram: a fotografia, o gravador e o cinema. Tamuz, o deus-rei, deve estar inconformado.
Minha memória às vezes se comporta como um sangramento. Datas e nomes escapam de minha mente num jato contínuo. Se tento estancar o fluxo com uma toalha, as hemácias e os nutrientes misturam-se com as fibras do tecido, embaralhando tudo. As lembranças perdem a nitidez. As referências mais óbvias ficam imprecisas.
Um dos contos mais sublimes de Borges fala justamente de um jovem uruguaio paralítico dono de uma memória prodigiosa. Irineu Funes, o memorioso, era incapaz de esquecer. Ele recordava perfeitamente o desenho das nuvens do amanhecer de todos os dias pretéritos. Lembrava todos os sonhos e entressonhos que já tivera. Podia recuperar cada segundo de um dia inteiro, e esse exercício levava evidentemente outro dia inteiro. Não precisava escrever nada, tudo o que visse ou lesse ficava gravado pra sempre em sua memória. O narrador, perplexo, logo nota que “Funes não recordava somente cada folha de cada árvore de cada serra, como também cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado”.
(Parêntese: na vida real quem mais se aproximou de Funes, o memorioso, foi o norte-americano Kim Peek, que sabia de cor mais de 12 mil livros. Ele sofria da misteriosa e fascinante síndrome de Savant. Os portadores dessa síndrome desenvolvem tanto habilidades extraordinárias quanto graves limitações. No caso de Peek, o autismo foi sua maior limitação.)
A prodigiosa memória de Funes é exatamente igual a de nossos computadores. Os programadores a batizaram de memória por código postal. Significa que cada informação tem um endereço específico no imenso banco de dados. Quando solicitado a recuperar uma informação em particular, o sistema simplesmente vai correndo ao endereço dessa informação. Não há erro.
Meu poder de evocação não é nada parecido com o do jovem uruguaio porque a evolução biológica nos presenteou — nós, seres humanos normais — com uma memória contextual. Pra recuperar uma informação, nossa mente segue pistas contextuais, vai e volta num labirinto de referências ambíguas, às vezes se confundindo. Por isso nossa memória é tão pouco confiável.
Gary Marcus, autor de Kluge: A construção desordenada da mente humana, escreveu em seu divertido livro: “Uma conseqüência da memória contextual é o fato de que praticamente toda informação que ouvimos (ou vemos, tocamos, saboreamos ou cheiramos), queira você ou não, desencadeia novos conjuntos de memórias, normalmente de maneira inconsciente”. É no mundo da literatura que Marcus curiosamente vai pinçar um exemplo disso. As poderosas lembranças de Marcel, protagonista de Em busca do tempo perdido, de Proust — a expressão memória involuntária é desse memorioso romancista francês —, emergiram graças à certeira combinação de sabor e cheiro proporcionada por um prosaico chá com madeleines.
Há pessoas que apreciam os improvisos e as delicadas surpresas da memória involuntária. Eu confesso que gostaria de ter um controle maior sobre meu banco de dados e o sistema que o gerencia. Numa aula ou numa palestra, costuma ser bastante penoso ser pego de surpresa pelos lapsos. O esquecimento é sempre traiçoeiro. Ele provoca sangramentos difíceis de estancar.
Atualmente há empresas de tecnologia desenvolvendo interfaces diretas entre cérebro e computador: os implantes cerebrais. Graças a esses implantes, pacientes tetraplégicos conseguem movimentar esqueletos robóticos apenas com o poder do pensamento. Nas próximas décadas, dispositivos como o BrainGate, de empresa de mesmo nome, transformarão o computador numa extensão de nossa mente. Usaremos programas e navegaremos na web sem a necessidade de mouse e teclado. Não há dúvida de que, nesse cenário, o casamento da memória contextual, biológica, com a memória por código postal, eletrônica, mudará radicalmente a rotina das pessoas. Para o bem e para o mal.
A habilidade de recordar todos os detalhes dos momentos mais agradáveis ou importantes da vida será muito bem-vinda. Mas não será nada divertido lembrar de todos os pormenores dos momentos mais desagradáveis e traumatizantes. Nesse caso, o que fazer? O roteirista Charlie Kaufman e o diretor Michel Gondry têm a resposta: recorrer, é claro, a uma clínica especializada em apagamento de memória, como no comovente Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Por que sofrer, por exemplo, de amor ou de ódio, se umas poucas sessões na clínica do doutor Howard Mierzwiak pode apagar todos os traços de memória da pessoa amada ou odiada? Borges aprovaria o novo método: “Eu não falo de vingança nem de perdão, o esquecimento é a única vingança e o único perdão”.
Antes de ser a inquietante premissa do longa-metragem da dupla Kaufman-Gondry, a supressão de memória já havia aparecido num conto do paranóico Philip K. Dick, intitulado O pagamento. Na ficção de Dick, um engenheiro contratado pra trabalhar num projeto ultra-secreto aceita ter as lembranças apagadas logo após a conclusão do trabalho.
Outra premissa de que gosto bastante, também de um conto de Dick, é a do implante de recordações. Falsa memória ou memória ilusória é um fenômeno conhecido por psicanalistas e terapeutas. Nossa mente não raro constrói vívidas lembranças de fatos que não aconteceram ou foram distorcidos. É normal. Mas no irreverente conto de Dick, intitulado Lembramos para você a preço de atacado, o acréscimo de lembranças inventadas é feito comercialmente, por uma empresa especializada. Se você sonhar em passar as férias num caríssimo resort em Marte, mas só conseguir economizar um quinto do dinheiro necessário, você poderá ao menos comprar as lembranças de umas intensas e radicais férias marcianas. Essas lembranças serão gravadas em sua mente e você jamais conseguirá distinguir a verdade da fantasia.
(Parêntese: já foram rodados dois longas-metragens a partir desse conto. Fuja de ambos, são muito ruins. Todo o charme de Lembramos para você a preço de atacado está no humor psicótico típico das ficções de Dick, humor que simplesmente desapareceu, no cinema.)
(Outro parêntese: vale a pena conferir o uso que George Orwell fez da noção de falsa memória em sua clássica distopia, 1984.)