Três tristes tigres, romance mais célebre de Guillermo Cabrera Infante, é tido como um clássico da literatura cubana. Publicado em 1967, em Londres, foi o romance que trouxe renome internacional ao seu autor. Passaram-se 45 anos e o livro ainda é editado e freqüentemente descrito de forma superlativa, como “monumento”, “obra de gênio” ou “leitura indispensável”. São freqüentes as comparações com pilares do modernismo, como James Joyce ou Ezra Pound.
Fica claro desde o início que não é um romance pouco ambicioso. O mero folhear de suas páginas mostra vários momentos de inventividade visual, poemas, diálogos em forma teatral, uma página que tem seu texto espelhado na página oposta. O termo polifonia parece insuficiente para descrevê-lo. Mais do que uma obra de muitas vozes, é uma obra de muitas formas, muitas escritas, verdadeiramente múltipla. Um livro difícil de apreender, difícil de encontrar de imediato uma abordagem que dê conta de seu todo. Se é para qualificarmos Três tristes tigres de leitura obrigatória (como se existissem leituras obrigatórias para mais gente do que quem está se preparando para o vestibular), provavelmente não seria exagero dizer que é também uma obra de releitura obrigatória, se o objetivo é sair com uma leitura coesa do livro.
O próprio trabalho do resenhista se mostra complicado em um nível muito básico, pois a clássica tática de selecionar um trecho e mostrar ao leitor um pouco de como é o livro é quase impossível se quisermos manter o intuito de apresentar um exemplo seu: se tivéssemos a capacidade de citar uma dúzia de trechos, ainda não seria suficiente. Temos passagens em forma de depoimento, em forma de carta (cheios de erros de ortografia que o personagem cometeria), narração em primeira pessoa, longos diálogos de discussão, narração indireta livre, fluxo de consciência…
Talvez para servir de brevíssimo guia, o romance abre com uma nota do autor, se aproveitando de certa publicidade cansada em romances comerciais de terror e mistério que diz que suas histórias tenebrosas não deveriam ser lidas à noite. Infante, por sua vez, diz que Três tristes tigres é um livro que “deve ser lido à noite”. Um romance que é, de acordo com o autor, uma celebração da noite tropical, e ele faz até uma listagem de temas obsessivos: “Havana, a língua inglesa, a literatura, a gíria da cidade, as havanesas, as matinês, o bolero radical, o movimento de carros no Malecón, e também a nostalgia e a noite”. Um breve parâmetro para poder se perder com mais segurança.
Paradoxo da inovação
Ao ler a longa parte final da edição que fala da vida do autor (são mais de 20 páginas, separando ano a ano, e inclui até a vinda ao Brasil no final dos anos 1980), vemos que um dos principais choques do romancista com a revolução socialista, além da pertinência da descrição de “Kafkalândia” para seu país natal, foi o destino da vida noturna de Havana, descrita por ele como tendo sido transformada em “cidade fantasma”. A leitura mais superficial do livro, até mesmo uma que pulasse a nota introdutória do romancista, enxergaria a paixão de Cabrera Infante pela vida noturna da cidade caribenha, os duelos de reputação nas boates e nas ruas, as andanças ébrias e sem rumo, as discussões e conversas intermináveis sobre sexo, álcool, literatura, cinema, tudo.
Neste volume, cada um dos dez capítulos é detentor de características próprias. O livro abre em tom de apresentação de espetáculo de nightclub, com frases em inglês misturadas no meio do texto, às vezes como tradução simultânea, às vezes não, como quem falasse com competência claudicante para uma platéia metade composta de turistas. O leitor versado em categorias da crítica literária brasileira mais consagrada pode até desconfiar de certo exotismo na representação, uma vontade de simplificar e plastificar, mas antes de se chegar a conclusões apressadas é útil lembrarmos que a literatura cubana a partir do regime socialista é metade, ou quase metade, uma literatura do exílio, e o mundo que Infante narra, pré-revolucionário, é um mundo existente principalmente na memória, sujeitando-se assim como que naturalmente a todas as suas distorções de saudosismo meio grandiloqüente.
Não que o painel nostálgico apresentado por Cabrera Infante seja o de um idílio caribenho infelizmente interrompido pelo ímpeto socialista. Há violência, imundície, miséria, imposição do caráter de mercadoria do sexo e diversos outros problemas. Os personagens são sempre, ou quase sempre, frustrados em seus desejos, suas derrotas e até mesmo eventuais conquistas. As mudanças em suas vidas chegam invariavelmente desestruturando suas certezas, abalando suas convicções de que as coisas às quais dão valor podem permanecer sob controle. Ou isto ou a mesmice, sempre insatisfatória. Não há discursos no púlpito sobre a injustiça, mas para não ver, seria necessária muita cegueira.
O leitor mais interessado em caracterização, em enredo, trama ou conflito provavelmente não encontrará em Três tristes tigres uma leitura que lhe agrade. O pouco que se pega da história de um jornalista que se envolve com cantoras de shows é propositadamente desenvolvido de forma despedaçada. O leitor interessado em conhecer Cuba como quem faz turismo por livros também não sairá satisfeito, já que o que se narra é declaradamente um mundo que não existe mais, e mesmo assim não é narrado com um objetivo retratista. Quem se apega também ao fato de que se fala de um autor exilado, inimigo do regime castrista, não encontrará qualquer fúria anti-socialista (impossível falar de Cuba sem encostar neste assunto). O saudosismo deste mundo perdido aqui parece inteiramente consciente de que os bons e velhos tempos geralmente têm mais de velhos do que de realmente bons.
O que se encontra em Três tristes tigres é um autor que claramente tem o panteão modernista como parâmetro estético. Todas as dificuldades típicas das experimentações aparecem com força total, ou talvez com um pouco de desgaste por não se tratar de seu primeiro surgimento. É o cansado paradoxo da tradição da inovação: na medida em que a inovação consegue se consagrar e formar certa tradição, deixa de ser inovação. Um capítulo de travessia particularmente problemática ao leitor brasileiro pouco iniciado em cânones literários caribenhos é o que narra a morte de Trotsky de novo e de novo estilizando diversos autores cubanos, como José Martí, Lezama Lima e Alejo Carpentier. O leitor que não conhece para além do nome e breve biografia desses autores deve talvez apenas tomar com boa fé que seriam páginas de boa estilização, embora seja cabível questionar qual é o saldo de conteúdo que podemos tirar de uma (possível) demonstração de habilidade de imitação do autor. Outro ponto que realmente não é fácil de captar em primeira leitura é a necessidade de narrar quatro vezes o incidente de um casal de turistas com um homem pobre local a respeito de uma bengala que eles acham que teria sido roubada por ele.
Difícil também é avaliar ou até mesmo ter experiência de leitura referente àquilo que é freqüentemente mencionado quando se fala do livro, que se trataria de uma obra “escrita em cubano”, que tentaria reproduzir a forma de falar da ilha. Não se expressa aqui uma opinião negativa quanto à tradução, feita por Luis Carlos Cabral, já que não existe uma Cuba lusófona que o tradutor poderia ter utilizado como referência para seu ofício, e sim a identificação de um impasse possivelmente inerente ao ato tradutório: traduzir, em muitos casos, é encurtar distâncias, e certas distâncias importantes já existentes no texto original só podem ser encurtadas pelo apagamento. Uma estilização que inventasse uma dicção que tentasse dar conta desse “falar cubano” decerto seria submeter a uma estética ausente no romance. Ao leitor, resta apenas uma confirmação imediata e palpável dos problemas (às vezes esquecidos, em meio a nossas leituras mais cosmopolitas) de passar uma obra de arte de um idioma a outro.
Mesmo com estas dificuldades, o romance ainda carrega algumas partes memoráveis, como a moça pobre que consegue chamar a atenção de um jovem de família rica e narra alguns de seus desencontros, como se deparar em silêncio com uma antiga colega precocemente envelhecida trabalhando para o casarão ou encontrar bizarramente um esqueleto na banheira com pedaços de carne ainda se soltando. Dos trocadilhos que o autor é notório por cometer, poucos se destacam, como ad hoc dog ou o relato de ter visto uma placa de aviso a caminhoneiros transportando materiais dizendo que “aos materialistas é proibido estacionar em absoluto”, mas a maioria acaba não provocando o menor sorriso (e este leitor que vos fala é um grande entusiasta do trocadilho). É na última parte do livro, Bachanais, onde os jogos de palavra humorísticos e as referências literárias aparecem com maior freqüência e insistência, que o leitor sente que a história que foi se formando até então é quase que abandonada por discussões sobre quais autores e personagens do cânone ocidental corresponderiam à figura do “contraditório”.