Em sua última passagem por Curitiba, durante a 31ª Semana Literária & Feira do Livro do Sesc, Eucanaã Ferraz — professor de literatura brasileira na UFRJ e poeta renomado — foi arguido a respeito do suposto egoísmo envolvido no fazer poético. Ele respondeu que a poesia, ao contrário do que aquele pensamento denota, depende muito mais dos outros — isto é, dos leitores — do que a prosa, pois a condensação obtida na linguagem poética pode torná-la deveras “opaca”, em contraposição à “transparência” de sua fala perante o público, por exemplo. As diversas camadas de um verso, seus vazios e buracos, suas aberturas e dubiedades, tudo isso está sujeito ao leitor penetrar no texto, conversar com este e ativá-lo. Você não tem como saber que “máquina” um poema é — se um liquidificador ou uma máquina de costura — antes de “ligá-lo”.
O poeta não omitiu que, quanto às suas preferências literárias relativas à prosa, ele tem uma queda pelos livros que mais se aproximam da poesia. No momento em que revelou isso, não pude deixar de pensar que, entre estes, bem que poderia estar Seu corpo figurado, de Douglas Arthur Martin. A conversa a respeito da plurissignificação poética parecia se encaixar perfeitamente na experiência de leitura desse livro publicado no final de 2011.
Em um primeiro momento, Seu corpo figurado aparenta poder ser lido tão somente como um conjunto de três novelas que apresentam versões romanceadas da vida de três sujeitos: o pintor Balthus (1908-2001), o poeta Hart Crane (1899-1932) e o modelo George Dyer (1934-1971). As 148 páginas foram escritas em segunda pessoa — o que incita uma maior proximidade do leitor, convidado a se confundir com os protagonistas. Há muitos, diversos parágrafos semelhantes a versos, compostos de frases únicas que não encostam na margem direita da página. Alguns detalhes específicos — dados biográficos — são citados nas narrativas, o que as torna mais suscetíveis de serem lidas como biografias íntimas desses personagens históricos. E, por fim, em cada uma das novelas há uma seção, de uma ou duas páginas, toda escrita em itálico, que oferece um enfrentamento maior do artista consigo mesmo.
Tais características sugerem que os textos possam ser lidos como biografias poéticas de seus sujeitos; biografias que, por meio do uso da voz em segunda pessoa, ultrapassam o esforço comum de aproximar leitores e personagens históricos do conhecimento da vida real destes. Outra possibilidade suscitada é a de que as novelas sejam lidas como chaves de leitura para suas respectivas obras. A busca de tal efeito não parece ser uma novidade na obra de Douglas A. Martin: seu primeiro romance, Outline of my lover, também narra a versão romanceada de seu relacionamento amoroso de seis anos com Michael Stipe, vocalista da banda de rock R.E.M..
Creio que estas são as mais simples interpretações de uma leitura de Seu corpo figurado. Alguém que já tenha tido contato prévio com a obra dos três protagonistas (no caso de Dyer, com as pinturas de Francis Bacon, de quem era modelo) deve considerar proveitoso o esforço de Martin no sentido de usar suas vidas como base para uma obra de ficção e de imaginar a intenção por trás de suas obras. Partindo desse viés, o texto não aparenta ser dos mais difíceis e a leitura pode fluir com particular rapidez.
Contudo, esse tipo de análise não explicaria a razão das três novelas estarem reunidas no mesmo volume. E como responder com um simples “o autor quis que fosse assim” ou “a editora preferiu desta forma” não me pareceu satisfatório, tentei observar se haveria um fio condutor entre os textos.
Pistas
Tão logo se inicia a leitura da segunda novela, Crane, percebe-se algumas escolhas vocabulares que “ecoam” da anterior, Balthus. “Meninas”, “flores”, “saias”, “cisnes”: estes termos e outros, utilizados antes de forma a tecerem um conjunto coeso de significados, aparecem novamente. A diferença é que, dessa vez, elas são citadas em suas acepções ordinárias, enganando o leitor que esperava que esse tipo de comunicação entre os textos potencializasse as metáforas dessas palavras. Esse movimento também pode ser observado entre Crane e Dyer, com resultados equivalentes.
Resultados mais interessantes são produzidos quando se busca analisar as três novelas em seqüência, ao invés de duas por vez. Para além dos aspectos formais citados nos parágrafos anteriores, percebe-se uma preocupação do autor de Seu corpo figurado em tornar o livro o mais plurissignificativo possível. Sempre que se pensa ter alcançado uma linha interpretativa que conecte as três partes e que, talvez, seja a definitiva e mais importante, os parágrafos-versos apontam para uma nova pista que, se seguida, desvela um viés novo e interessante. A seguir, alguns deles.
Substrato da arte
“As idades de um artista” é o princípio organizador mais simples de ser percebido: como é ser alguém que lida com o movimento artístico durante a infância, a juventude e a maturidade? Para responder a essa pergunta é que Martin parece ter escolhido os momentos específicos da vida dos três artistas: Balthus é ainda uma criança, Hart Crane vive sua juventude e Francis Bacon já está velho. É possível ir um pouco mais longe nesse sentido se a devida atenção for dada às pessoas com as quais eles se relacionam.
O amante da mãe de Balthus é o poeta Rainer Maria Rilke, apresentado como um substituto para a figura paternal ausente na vida do menino. A primeira frase da novela (“O problema de um grande poeta é esse.”) permite-nos notar, em certos momentos, como “a angústia da influência” (tomando emprestada a expressão explorada na obra homônima de Harold Bloom) afeta o desenvolvimento de Balthus. Ele parece querer orgulhar Rilke por sua produção e, ao mesmo tempo, encontrar seu próprio caminho e superar seu “pai” — algo em que é assistido pelos incentivos do próprio Rilke.
Semelhantemente, a primeira frase da novela centrada em Hart Crane também indica como seguir por esse viés: “Ali estavam suas figuras”. O jovem poeta tira de suas experiências sensoriais (aquilo que ele vê, toca, ouve e lê; aqueles com os quais transa) o substrato de sua escrita, enquanto luta para não se sabotar ao ficar tanto tempo sem escrever. Poucos são os que se importam se ele está realizando algo. Crane não tem o auxílio de um Virgílio que o guie em seu inferno pessoal: sua assistência provém apenas dos clássicos lidos (Poe, Rimbaud, Whitman, Melville), com os quais dialoga.
“Você foi pego por essa continuidade.” O parágrafo inicial da terceira novela se relaciona com a constante sucessão de modelos que passaram pelo pintor Francis Bacon, interrompida com o advento do jovem George Dyer, o mais duradouro e inspirador de todos. A relação entre os dois (não estritamente profissional) é criticada pelos amigos de Bacon — consideram tanta dependência de um modelo uma espécie de fraqueza —, o que o faz constantemente diminuir a importância de seu muso na frente dos outros. Depois da morte deste, contudo, sua arte sente o impacto.
Fios
Há outros fios condutores bastante ricos a serem explorados.
A temática queer e a da sexualidade ganham diferentes abordagens em cada uma das novelas: em Balthus, Martin dá a impressão de explicar a obra desse pintor como uma possível falta de identificação deste com seu próprio corpo e sexo (“Na tela, podia transformar o corpo que tinha diante de si no corpo de uma menina”, pensa enquanto se olha no espelho), numa idade em que a sexualidade ainda está sendo despertada; em Crane, o protagonista está em plena juventude, aproveitando-a ao máximo em encontros com inúmeros desconhecidos, a maior parte deles marinheiros (“Eles ficam tão desesperados que te dizem exatamente o que querem, começam a te responder quando você faz perguntas com o corpo. Você os segue por muitas e muitas quadras. E então, afinal, você cai em suas derradeiras ondulações atrás dos prédios.”); em Dyer, há a representação de uma relação “estável” entre homens de idades diferentes, em uma mistura dos âmbitos profissional e amoroso (“Você é novo, o novo dele, sua mais nova fuga por um triz.”).
A questão do feminino se faz presente nas meninas (e o que elas representam) das pinturas de Balthus, no nome de solteira da mãe adotado por Crane, no menosprezo de Bacon por seu muso, expresso ao chamá-lo por pronomes femininos. O tema da morte, por sua vez, é apresentado na primeira novela com a morte de Rilke e, nas duas seguintes, com o constante flerte dos protagonistas, Hart e George, com o suicídio, ato que ambos findam concretizando.
E assim por diante.
Intercâmbio
Difícil não perder o rumo entre tantos significados possíveis para as mesmas linhas.
Finalmente, o título da obra dá a dica para uma visão mais abrangente, que possivelmente abarca muito bem as anteriores: Como representar o corpo artisticamente, em linguagem figurada ou realmente figurado (representado por meios plásticos)? Como poetas (na categoria, incluo o próprio Martin) e pintores, esses seres limitados que têm as maiores ambições possíveis, conseguem representar a experiência humana em suas obras?
Creio que o livro se destaca — mesmo em nosso tempo, tão afeito à metaliteratura — por não se limitar ao ponto de vista de escritores, detendo-se eminentemente sobre a vida de pintores. Pode não parecer muito, mas a qualidade do resultado final obtido por Martin em Seu corpo figurado faz com que se dê mais atenção à possibilidade dessas proveitosas “trocas” da literatura com outros tipos de arte — música, cinema, teatro ou artes plásticas, como neste caso.
Fica a sensação de que as “máquinas” a serem “ligadas” pelos leitores — máquinas produzidas nesse intercâmbio entre artes — têm todo o potencial de nos surpreenderem. E de serem maravilhosas. E de demandarem novos nomes e funções — nada de liquidificador ou máquina de costura.