Um mundo que troca de pele

Assassinado pelos nazistas em 1942, o polonês Bruno Schulz legou uma obra sensível ao seu tempo
Auto-retrato de Bruno Schulz
01/10/2012

É excelente ter acesso a toda produção literária de Bruno Schulz em um único volume, Ficção completa, lançado pela Cosac Naify. Percebe-se o movimento do autor, a intensificação de alguns elementos, o abandono de outros, as linhas tênues que amarram os contos dentro de um conjunto.

Sanatório sob o signo da clepsidra, publicado originalmente em 1937, guarda uma relação estreita com Lojas de canela, a estréia de Schulz em 1933, ao mesmo tempo em que representa um exercício mais angustiado de busca da maturidade. Em Lojas de canela o que prevalece é o olhar infantil, mágico, fantástico; Sanatório, no entanto, vai, pouco a pouco, abrindo espaço para a presença do mundo exterior na narrativa.

A edição se completa com outros quatro contos avulsos, escritos por Schulz logo depois da publicação de Sanatório, e também com uma série de desenhos em preto e branco feitos pelo autor, que era professor da matéria no ginásio de sua cidade natal. E nisso encerra-se o material de Schulz, já que a Segunda Guerra Mundial se encarregou de destruir uma porção de contos e um romance inacabado, intitulado O messias. Faz falta, no entanto, os ensaios, artigos e cartas escritos por Schulz (e comentados por escritores como Gombrowicz, Danilo Kis, Coetzee, Philip Roth), inexplicavelmente mantidos de fora dessa seleção.

O labirinto
Qual é o lugar que Bruno Schulz reserva ao seu leitor? É certamente um labirinto, essa estrutura de múltiplos caminhos cuja imagem é tão recorrente em seus contos. Em Schulz, o vento cria “um labirinto negro crescendo em pavimentos infinitos” (do conto A tempestade); a vizinhança de sua infância é um “labirinto de outras casas, de alpendres, de saídas inesperadas para pátios alheios” (A visitação); e a primavera dá a luz que permite ver “os labirintos do interior, os armazéns e os celeiros das coisas, os túmulos ainda quentes, a madeira apodrecida, a palha” (A primavera).

O narrador de Schulz está, portanto, perdido dentro de um labirinto, e carrega o leitor para dentro desse universo — pois é impossível ler a prosa de Schulz sem sentir uma espécie de soterramento estético, dada a força de suas imagens, dada a força da evocação sinestésica que ele coloca em suas palavras. Como afirmou o escritor polonês Ignacy Witkiewicz, as frases de Schulz são “como meteoros”, iluminando paisagens desconhecidas no próprio tecido da realidade.

Ao mesmo tempo em que sofre, em que padece de angústia, o narrador de Schulz busca sempre aprofundar sua experiência, sua vivência com o mundo. Talvez por isso alguns críticos tenham falado em “masoquismo” ao comentar Schulz, porque quando o prazer é tematizado em suas histórias, o sofrimento aparece sempre como um complemento, um gêmeo, quase um pré-requisito.

Os dois sentimentos, contudo, são indissociáveis — e essa mescla desconfortável é que confere à linguagem de Schulz sua potência única. O labirinto, para Schulz, não é apenas uma metáfora, é a própria condição do artista, enfiado em um complexo pesadelo de escolhas e possibilidades que ele mesmo criou. No caso específico das histórias de Schulz, há também a luta interna entre prosa e poesia — a primeira organiza a transformação de suas memórias em narrativa e a segunda preenche essa narrativa com cores e formas de apelo surreal.

As sensações
Em um conto de Sanatório (Época genial), Józef — o narrador e alter-ego de Bruno Schulz — convida um vizinho para ver seus desenhos. “Estes desenhos são excelentes”, afirma Szloma, o vizinho, “poderia dizer que o mundo passou por suas mãos para se renovar, para trocar de pele, para descascar como uma lagartixa maravilhosa”.

As cores estão por todos os lados nas histórias de Schulz. Seu olhar é atípico, estranhado, e procura ler o mundo com o auxílio do “alfabeto mudo das cores” (As baratas). Em Schulz, o mundo está desfigurado, transfigurado, transformado em outra coisa — é uma lagartixa maravilhosa, renovada, com uma pele jamais vista, como aponta Szloma com sua sabedoria prática.

Esse mundo de Schulz deve ser pensado através de seu visceral contato com a natureza, como já fica evidente no título de alguns contos: Os pássaros, e A tempestade, de Lojas de canela; A primavera, O segundo outono e A estação morta, de Sanatório; e o conto O outono, que faz parte dos esparsos. Schulz potencializa os estímulos da natureza com suas descrições, enfatizando a “fertilidade”, a “fermentação” e a “floração”, reiterando continuamente seu fascínio pelas estações, ventos, neve e tempestades.

Nas palavras de J. M. Coetzee, Schulz procura em seus contos “um acesso desprovido de censura ao domínio do mito”, pois o artista é “uma criatura mítica envolvida numa busca mítica”. A partir do desnudamento radical de sua vida interior, Schulz procura também uma visão purificada do mundo. É perceptível em vários momentos, contudo, a intensa impossibilidade dessa visão, o que deixa a ficção de Schulz cindida entre a idealização mágica típica da infância e a amargura da maturidade.

Esse é o impasse que vivia sua pequena cidade, Drohobycz, perdida numa província do Império Austro-Húngaro, dividida entre o passado rural e a crescente industrialização. Schulz, com essa camada de magia que coloca sobre o mundo, apreendeu uma visão que, poucos anos depois, seria impossível. Drohobycz é atropelada pelos soviéticos em 1939 e, dois anos depois, pelos nazistas — que assassinariam Schulz, e tantos outros judeus, em 19 de novembro de 1942 (a trágica “Quinta-feira Negra”). É sintomático que Schulz, no último conto do livro Sanatório (lançado em 1937, quando o nazismo já era uma consolidada realidade), intitulado A última fuga do meu pai, escreva que “havia começado uma nova era, vazia, sóbria e sem alegria — branca como papel”.

O controle
A atmosfera fantasiosa e o ponto de vista infantil, presentes com variada intensidade em todos os contos de Schulz, não são, contudo, indícios de um autor despreparado, sem leituras, daqueles que confiam no jorro espontâneo da criação. O trabalho de Schulz é minucioso, há uma consciência artística ampla por trás da construção desse mundo onírico — segundo Czeslaw Milosz, em texto incluído em Ficção completa, Schulz “era um prosador cuja preocupação com a linguagem ia muito além do normal”.

Fluente em alemão (com sua noiva, traduziu para o polonês O processo, de Kafka), Schulz teve contato com os escritos psicanalíticos de Freud — o que fica marcado em seu uso de termos como “anamnese”, “camadas subconscientes” ou “condições primitivas”. A chegada de um bebê a casa, no conto Noite de julho (Sanatório), é exemplar: “ele trouxe à nossa casa certo retorno às condições primitivas, fez recuar a evolução sociológica à sua fase matriarcal, a um ambiente de harém e de nomadismo, um acampamento de lençóis, fraldas, roupa eternamente lavada e estendida para secar”.

Schulz, no entanto, transfigura suas leituras numa espécie de ambiente semântico que dá densidade a essa faceta obscura de suas histórias — que diz respeito ao sentimento de clandestinidade que atravessa toda a educação dos sentidos em Schulz. Bengalas, trens noturnos atravessando túneis, chapéus, elmos e cartolas, mulheres amamentando, velas, olhos fixos no escuro, frestas, caules de flores, penicos: essas imagens são recorrentes, e indicam uma mescla de psicanálise e expressionismo, uma apropriação muito particular realizada por Schulz dos principais fluxos criativos de sua época.

Um trecho da parte final do longo conto Tratado dos manequins, incluído em Lojas de canela, dá a medida do fluxo poético de Schulz e de seu uso das referências:

Nesse dia meu pai demonstrava uma estranha vivacidade. Seu olhar, olhar astuto, olhar irônico, jorrava entusiasmo e bom humor. De repente, ficava muito sério e examinava de novo a infinita escala de formas e matizes que a matéria polimorfa costumava adotar. Fascinavam-no formas limítrofes, duvidosas e problemáticas, tais como o ectoplasma dos sonambúlicos, pseudomatéria ou emanação cataléptica do cérebro, que em certos casos sai da boca da pessoa adormecida espalhando-se pela mesa inteira, enchendo o quarto como um ralo tecido flutuante, uma espécie de massa astral entre o corpo e o espírito.

A coragem
A literatura de Schulz se ocupa dos intervalos do visível, daqueles momentos de irrupção do fantástico e do hiper-sensível no cotidiano. A partir de um procedimento de resgate do olhar impressionável da infância, Schulz preenche seus contos com interpretações e leituras não-convencionais do mundo. Talvez essa seja a tarefa mais difícil da arte literária: inaugurar um mundo particular que esteja, simultaneamente, fundado no contrabando entre o real e o ficcional.

No caso de Schulz, o êxito nessa tarefa está ligado à coragem de usar como material sua própria vida interior. Porque é preciso considerar, na leitura da Ficção completade Schulz, a coragem necessária ao ato de mostrar a subjetividade de forma tão detalhada. É esse radicalismo que confere a densidade poética do mundo onírico de Schulz, estabelecendo uma intimidade quase obscena com o leitor.

Grandes obras foram escritas sob o signo dessa busca — e por escritores contemporâneos de Bruno Schulz. Publicado em 1935, no espaço entre Lojas de canela e Sanatório, portanto, o romance Auto-de-fé, obra-prima de Elias Canetti, é um bom exemplo. Alguns anos antes, em 1929, Alfred Döblin lança Berlin Alexanderplatz. E nos primeiros anos da década de 1930, Hermann Broch publica sua trilogia Os sonâmbulos.

Essas obras magníficas sobreviveram — e continuam sobrevivendo hoje — porque são, antes de tudo, testemunhos de uma luta pela diferença. As histórias de Schulz, Canetti, Broch e Döblin lutam pela sustentação de uma individualidade, um esforço certamente sobre-humano diante das máquinas totalitárias que bloqueavam todos os horizontes, todos os ambientes e discursos. Ler Schulz e sua Ficção completa, portanto, é entrar em contato com um ato de coragem e de exaltação da imaginação que, atravessando o tempo, nos alcança e atinge.

Ficção completa
Bruno Schulz
Trad.: Henryk Siewierski
Cosac Naify
416 págs.
Bruno Schulz
Nasceu na Galícia, região da Polônia, em 1892. Em 1933, o escritor e desenhista publica seu primeiro livro, Lojas de canela, que o torna um autor nacionalmente conhecido. Sanatório sob o signo da clepsidra, seu segundo livro de contos, é lançado em 1937. Schulz é também autor de uma coletânea de desenhos e gravuras, O livro da idolatria. Foi assassinado pela Gestapo em novembro de 1942.
Kelvin Falcão Klein

É crítico literário, autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Modelo de Nuvem, 2011). Escreve em falcaoklein.blogspot.com.

Rascunho