Não é difícil notar que A paixão de A., do escritor italiano contemporâneo Alessandro Baricco, aqui lançado pela Companhia das Letras em 2011, trava um interessante diálogo com aquele que foi agraciado como “o mais importante romance norte-americano do pós-guerra”, O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, de 1951.
A compor os cenários das duas obras, temos, basicamente, como pano de fundo, a formação às avessas de adolescentes em seus embates e questionamentos que, inevitavelmente, culminam com a perda da inocência. De certa forma, o período conturbado que vivencia o protagonista anônimo do romance do escritor turinês, com seus 16 anos, na década de 1970, em Turim (confessamente carregado de tintas autobiográficas), evoca a via-crúcis do jovem do romance de Salinger (também de 16 anos), Holden Caulfield, em seu perambular desnorteado por Nova York, durante apenas três dias. E nesse sentido, não parece ser nada aleatório o nome escolhido por Baricco para a escola de narrativa que criou em sua cidade natal, homenageando explicitamente o personagem americano: Scuola Holden.
A paixão de A. é narrada em primeira pessoa por aquele adolescente, que, junto a outros três amigos, Luca, Bobby e Santo, verá a estabilidade de sua vida muito previsível desmoronar. Daí por que, embora toque o universo do Bildungsroman, o que percebemos, neste caso, é o que se poderia chamar de “formação nada edificante” ou — ainda em termos procedimentais — de uma investida na releitura daquele gênero, na qual a “formação” se dá muito mais por meio das reviravoltas existenciais, em que a maturação dos adolescentes está visceralmente ligada ao processo de humanização por que passam, em conseqüência das rupturas, descobertas e perdas, do que pela construção apolínea, falso moralista e conformista, forjadora de caracteres.
A intensificar ainda mais as regras da artificial normalidade, herdada no seio da tradicional família de classe média turinesa, há o fato de que esta se ancora num catolicismo ferrenho, o que, o tempo todo, é alvo da crítica contumaz do inconformado jovem narrador:
[…] Todos temos dezesseis, dezessete anos — mas sem que realmente saibamos, é a única idade que podemos imaginar: mal e mal sabemos do passado. Somos muito normais, não há outro plano previsto além de ser normal, é uma inclinação que herdamos no sangue. Durante gerações, nossas famílias trabalharam para refinar a vida até tirar dela qualquer evidência — qualquer aspereza que pudesse nos destacar ao olhar distante…
[…] No enxoval da normalidade regulamentar, complemento irrenunciável é o fato de que somos católicos — crentes e católicos. Na realidade essa é a anomalia, a loucura com a qual revertemos o teorema da nossa simplicidade, mas tudo nos parece muito rotineiro, regulamentar. Acreditamos, e não parece haver outra possibilidade. E no entanto cremos com ferocidade, e fome, não de uma fé tranqüila, mas de uma paixão descontrolada, como uma necessidade física, uma urgência. É a semente de certa loucura — a condensação evidente de um temporal no horizonte. Mas pais e mães não lêem a tempestade que se aproxima, só a falsa mensagem de uma branda aquiescência quanto aos rumos da família: assim nos deixam ir ao largo. Jovens que passam o tempo livre trocando os lençóis de doentes esquecidos na própria merda — isso ninguém lê pelo que é —, uma forma de loucura. Ou o gosto pela pobreza, o orgulho pelas roupas miseráveis. As orações, o orar. O sentimento de culpa, sempre. Somos desajustados, mas ninguém quer perceber isso. Cremos no Deus dos Evangelhos.
Androginia
O elemento que acabará provocando a subversão de todas essas regras será A., ou melhor, Andre, a adolescente de família rica cujo próprio nome encerra a androginia que tanto intriga e fascina os demais. Ela tem tudo o que as outras moças do lugar não têm: uma beleza masculina.
[…] O nome dela é Andrea — que em nossas famílias é um nome de meninos, mas não na dela, na qual até para dar nomes instintivamente há certa tendência ao privilégio. E não pararam aí, pois afinal a chamam de Andre, com o acento sobre o A, e é um nome que existe só para ela. Assim sempre foi, para todos, Andre. É por natureza muito bonita, quase todos entre eles são assim, mas é preciso dizer que ela é especialmente bonita, e sem querer. Tem um quê de masculino. Uma dureza. Isso facilita as coisas para nós — somos católicos: a beleza é uma virtude moral e não tem nada a ver com o corpo, portanto a curva de um traseiro não significa nada, nem o ângulo perfeito de um tornozelo delgado tem de significar alguma coisa: o corpo feminino é o objeto de uma sistemática remissão.
Será justamente Andre que, por “não ser de ninguém, mas também de todos”, iniciando os demais nos mais variados jogos de sedução, ajudará aqueles adolescentes a descobrir a própria sexualidade, até então extremamente reprimida.
Pasolini e Bertolucci
Carregando nas tintas das experimentações à la “sexo, drogas e rock’n’roll” em que todos eles são envolvidos, certas passagens do romance remetem a algumas cenas de filmes como Teorema (1968), de Pasolini, em que um visitante misterioso (no romance de Baricco, de modo análogo, esse papel é encarnado por Andre), que se hospeda na casa de uma família burguesa, vai, aos poucos, seduzindo a empregada, a mãe, o filho, a filha e, por último, o pai. Ou ainda, Os sonhadores (2003), de Bertolucci, em que o jovem estadunidense Matthew chega a Paris, em maio de 1968, para estudar francês, e acaba se envolvendo num triângulo amoroso e incestuoso com dois irmãos, Isabelle e Theo.
Apologia da queda
Mas, para além dessas descobertas e perdas de inocência de jovens que, em contato com o diverso, ousado e fascinante, deixam-se levar, revertendo, de modo radical, preceitos enrijecidos da falsa moral burguesa de suas tradicionais famílias, obsessiva e doentiamente católicas, Baricco, no fundo, retoma um dos temas mais caros e recorrentes de sua vasta poética ficcional, qual seja o da apologia da queda. De fato, em outras de suas obras-primas, como Mundos de vidro (1999), por exemplo, todos os personagens projetam sonhos e os concretizam na construção de seus castelos particulares (grandes empreendimentos representativos do espírito vigente, no início do século 20, como ferrovias, palácios de cristal, etc.) para, afinal, presenciarem, um a um, suas respectivas desintegrações, num viés de aguçada crítica à febre capitalista daquela época, já que como Marx anunciara: “Tudo que é sólido desmancha no ar”.
É na queda e só a partir da constatação da instabilidade dos sistemas, das regras e da vida, enfim, que, para Baricco, reside a chance de verdadeira humanização, que implica, necessariamente, em olhar para o diverso, sem nenhum tipo de preconceito. Daí por que, neste A paixão de A., a certa altura, o narrador observe:
[…] Porque a parede de pedra é sólida, mas em seu cerne sempre carrega um encaixe fraco, uma sustentação instável. Ao longo do tempo aprendemos com precisão onde — a pedra oculta pode nos trair. É no ponto exato em que apoiamos todo o nosso heroísmo, e todo o nosso sentimento religioso: é onde recusamos o mundo dos outros, onde o desprezamos, por certeza instintiva, onde sabemos ser insensato, com evidência total… Rompe-se a certeza da pedra e tudo desaba…
Emaús
O título original do romance é Emmaus, e quando nos aproximamos da metade do enredo, o narrador confessa que ele e seus amigos adolescentes gostam muito desse episódio bíblico e decide recontá-lo. Como se sabe, alguns dias depois da morte de Cristo, dois homens caminham pela estrada que leva à aldeia de Emaús, discutindo sobre o que acontecera no Calvário. Um terceiro homem se aproxima deles, pergunta-lhes sobre o que estão falando e pede que lhe contem o acontecido. Como era muito tarde, aqueles o convidam para que fique:
[…] Durante o jantar, o homem reparte o pão, com naturalidade. Então, os dois entendem e reconhecem nele o Messias. Ele desaparece.
Já sozinhos, eles dizem: Como pudemos não entender? Por todo esse tempo ele esteve conosco, o Messias estava conosco e nós não percebemos…
Ainda que às avessas, ressignificando a passagem de Emaús por meio da excêntrica personagem de Andre e de sua revelação final (ela poderia, talvez, ser interpretada como a personagem que encarna o Cristo anti-herói, para o qual ninguém tem olhos compreensivos), esta obra de Alessandro Baricco acena — ainda que de modo indireto — a uma das questões mais agudas da Europa contemporânea (sobretudo da Itália): a do preconceito acirrado de grande parte de europeus xenófobos em relação às mais diversas levas migratórias, que ali aportam a todo o momento.
Olmi e Crialese
Transcendendo a problemática da adolescência em seu processo turbulento de formação, ao apontar a sistemática rejeição do outro, do que é diverso, pelos sistemas opressores de dominação (sejam políticos e/ou religiosos), o famoso autor italiano demonstra estar em consonância com alguns de seus conterrâneos cineastas, críticos destes nossos tempos, que denunciaram os flagelos sofridos pelos imigrantes clandestinos em seu país, tais como Ermanno Olmi, no recente Il villaggio di cartone (2011), e Emanuele Crialese, em Terraferma (2011, premiado na 68ª Mostra Internazionale d’Arte Cinematografica di Venezia).
Em outras palavras, “como não pudemos perceber?” que o outro — seja a excêntrica Andre o elemento estranho, seja o imigrante obrigado a buscar uma Terra firme — representa, em verdade, a figura dos enjeitados, à margem de todos os sistemas, encarnações demasiado humanas de um Cristo que nos negamos a ver?