Pelo modo como se constrói, pode-se dizer que o novo livro de poesia e tradução de Josely Vianna Baptista, Roça barroca, utiliza o método Haroldo de Campos — o que, aliás, é mencionado pela própria Josely no texto introdutório ao livro, intitulado “Nota da autora sobre as palavras azuis celestes”. A poeta curitibana, reconhecida pela qualidade de suas traduções de importantes obras da literatura hispano-americana e cuja poesia foi reunida em 2007 no volume Sol sobre nuvens, da coleção Signos — criada e por muitos anos dirigida por Haroldo de Campos —, traduziu para este novo livro os três primeiros poemas dos cantos míticos dos indígenas da etnia Mbyá-Guarani, tais como foram registrados pelo antropólogo paraguaio León Cadogan na década de 1940.
Essa experiência tradutória — um “exercício escritural”, nas palavras da poeta — prolifera-se em três outros tipos de texto presentes no volume: o Breve elucidário esclarece ou comenta termos ou trechos do texto original, registrado no dialeto mbyá da língua guarani; o breve ensaio Em busca do tempo dos longos sóis eternos dedica-se a esclarecer a cosmovisão dos Mbyá em relação ao espaço que habitam; e a seção Moradas nômades traz 30 poemas de Josely de algum modo relacionados com a experiência tradutória.
Enquanto o ensaio e o elucidário procuram intensificar nossa experiência de leitura e releitura dos cantos sagrados que foram traduzidos, de modo a inventar nossa aproximação de uma língua e de uma cultura a que não temos acesso, os poemas inscrevem uma tensão no livro, pois descentralizam a tradução: ao se inserirem no mesmo livro que esta, encenam uma espécie de inoculação de traços da cultura mbyá-guarani nos versos em português da poeta brasileira, cuja identidade se encontra em trânsito e cujo olhar transfigura-se diante das coisas simples.
Rumo ao exílio
O atrito entre os poemas de Josely e suas traduções — que constitui a força deste livro que amalgama antropologia e poesia — é proporcionado pelo interesse em textos originários. Ao explicitar a metodologia utilizada para a tradução como um conjunto de “compensações” na língua de chegada em resposta às perdas de recursos do texto original que a reescritura em outra língua provoca, Josely invoca como “excelente exemplo de tradução criativa” um dos três volumes de tradução de trechos da Bíblia por Haroldo de Campos, publicados entre 1990 e 2004: Bere’shith: A cena da origem (1992).
Interessa ressaltar como uma concepção tradutória moderna, que visa produzir um poema autônomo em relação ao original, convive com a procura por “cenas de origem” de culturas que, diferentes, nos constituem. Assim, tanto a tradução dos poemas bíblicos e da Ilíada (2001-2002) por Haroldo, quanto as novas traduções de Josely respondem à demanda de uma poesia que se escreve sobre os arquivos da modernidade — que são, também, arquivos do arcaico.
No ensaio publicado em 1984 chamado Poesia e modernidade: Da morte do verso à constelação. O poema pós-utópico, Haroldo de Campos justifica da seguinte maneira a tradução como “dispositivo crítico indispensável” da poesia contemporânea: “a admissão de uma ‘história plural’ nos incita à apropriação crítica de uma ‘pluralidade de passados’, sem uma prévia determinação exclusivista do futuro”. O grifo do termo “crítica” é aí decisivo para se considerar os limites dessa poesia, pois se trata menos de um conceito do que de um lugar de fala capaz de produzir, por mecanismos singulares — e, por isso, vários —, escrituras em crise.
Mas então qual é a crise que se lê em Roça barroca? Os três cantos lindíssimos dos Mbyá-Guarani traduzidos por Josely sugerem, entre outros, um itinerário que desloca o leitor para um espaço de exílio. No primeiro dos cantos, chamado Os primitivos ritos do colibri, lê-se, em dado momento, a imagem para uma indagação fundamental do homem em relação à criação que há poucas semanas ocupou o noticiário em sua — não menos bela — versão científica, com o achado do bóson de Higgs. Sobre o que havia antes da criação, o canto fala:
Nosso Pai Ñamandu, o primeiro,
antes de desdobrar de si seu céu
não se viu entre a treva,
ainda que o sol não existisse.
A luz de seu próprio coração o revelava;
seu sol era
o saber contido em seu ser-de-céu.
Em lugar da partícula de Deus a dar peso às coisas, o saber divino é comunicado aos homens a dar peso ao mundo por meio do vento ancestral que “já existia” antes da criação: “esse vento primeiro em que Nosso Pai viveu/ sempre vem outra vez/ no fim do inverno”.
A extrema sutileza da tradução de Josely aparece nestes últimos versos, cujas sílabas principais são compostas por consoantes “sopradas”, chamadas de fricativas: viveu, sempre, vem, vez, fim, inverno. O vento das sílabas constitui uma compensação da tradução do mesmo modo que o vento do fim do inverno constitui uma espécie de compensação da perda do saber divino, o “ser-de-céu”. O homem, ser de Terra, encontra-se exilado deste saber; conforme o terceiro dos poemas, chamado A primeira Terra, nesta não se encontra “o verdadeiro”: “agora em nossa Terra/ só resta seu reflexo”.
Reflexos do saber
Os mecanismos de compensação da tradução visam reescrever em língua portuguesa o mito mbyá-guarani. Se lembrarmos a persistência mencionada quanto à tradução das cenas de origem de diversas culturas, podemos dizer que, por meio do exercício tradutório, buscam-se compensações originárias. Há um lugar qualquer nesses poemas traduzidos que mobiliza a poeta a proliferar a tradução para outras produções, como os ensaios e os poemas de Moradas nômades, como se o original traduzido de língua estrangeira duplicasse o saber divino do qual o cantor indígena se exilou mas teima em refletir em seu canto.
Embora os poemas compostos por Josely resultem dessa operação de proliferação da tradução, eles guardam uma diferença fundamental em relação a todos os outros textos presentes em Roça barroca, inclusive os cantos traduzidos. Essa diferença pode ser observada nas duas vezes em que se menciona uma observação acerca dos indígenas feita pelo primeiro jesuíta português a chegar aqui. Padre Manuel da Nóbrega afirmou em 1549: “Aqui poucas letras bastam, pois tudo é como papel em branco”. No breve ensaio presente no livro, a tradutora considera com razão essa afirmativa o resultado da ignorância em relação à “riqueza sutil” dos mais de mil povos indígenas que habitavam a terra descoberta.
No entanto, no poema que abre a série Moradas nômades, chamado exercício espiritual, a mesma frase é inserida como epígrafe, e a imagem do papel em branco, tão insistente na poesia moderna, torna-se o espaço propício à viagem tradutória empreendida pela poeta:
risco
no portulano
da areia
o roteiro do error
(do latim errore):
viagem sem rumo
e sem fim,
como a dos ascetas
e dos apaixonados,
fadados ao êxtase
e ao naufrágio
Tudo isso indica que há uma diferença de estatuto entre o discurso crítico e o poema, pois cada um lida com os textos arquivados pela história de maneira diversa. Parece que o ensaio reescreve a história tal como ela já foi contada, corrigindo o ponto de vista do outro com base em outros pontos de vista, ao passo que o poema reinscreve a história e, de alguma maneira, a recomeça ao deus-dará — “o roteiro do error”. O poema a reinscreve, pois, em lugar de corrigir, rasurar, queimar arquivos ou produzir palimpsestos, ele desloca os começos, embaralha os tempos.
Esta, aliás, é a organização de diversos poemas do livro, nos quais apenas os últimos versos revelam aquilo de que, desde o começo, se dizia, embaralhando o ordenamento da linguagem: “sue/ o secor do poço/ soe/ o oco do cepo brote/ o bulbo do fruto/ vente/ o pólen poento/ (ventre)”. Assim, embora se preservem diferenças claras entre os textos que compõem Roça barroca, tradução, ensaio, poema e mito ocupam o espaço de um mesmo livro — que possui ainda apresentações de Luis Dolhnikoff e Augusto Roa Bastos e capa de Miguel Rio Branco — cuja estrutura é poética. Por ser poética, Roça barroca empreende uma filologia dos arquivos arcaicos.