Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, embora o título sugira, não é um livro de ficção. Herta Müller conta, em ensaios, a sua infância, a sua juventude, fala de suas experiências, fatos que num tempo não muito distante serviriam para a criação de suas personagens. Os ensaios, diferentemente dos tempos vividos pela autora, não exigem vigilância, censura, e Herta os narra sem medo. Este, exatamente o elemento deflagrador das ações da autora e de parte do povo romeno. O leitor é convidado a conhecer a intimidade criativa de uma grande escritora, ao mesmo tempo lhe é permitido imaginar as atrocidades das ditaduras.
Em Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, os ensaios se alimentam da ficção — e quem garante que esta não retribui o gesto? Admirador do gênero, este aprendiz escreveu em seu exemplar, sob o título do livro: “exercícios de autoficção”. Ficção e não-ficção — para Herta Muller, não faz tanta diferença. Os temas são recorrentes: suicídio, assédio do Estado, ameaça de deportação e o inevitável desejo de fuga. Seus livros são, antes de tudo, uma literatura de luta, de confrontos, de obstinação; uma luta em busca da paz, da liberdade, da possibilidade de ser.
A autora alterna lembranças da infância e da juventude vividas sob a sombra do terror e da desconfiança. Utilizando frases concisas, reconstrói o cenário onde a Securitate, polícia secreta de Ceausescu, permanece sob sua mira.
Alguns ensaios são extremamente particulares, pertencem ao universo da autora exclusivamente, quando fala, por exemplo, sobre seus amigos, alguns escritores, como o poeta Theodor Kramer ou Maria Tanase, cantora romena. Ainda no âmbito pessoal, Herta discorre acerca do poeta alemão Heinrich Heine, tece comentários sobre o livro Massa e poder, de Elias Canetti, e revela seu encontro com o também romeno filósofo Emil Cioran. Estranho encontro este de uma escritora em permanente luta por liberdade e um filósofo bastante próximo do fascismo. Nesses casos a narrativa não fica tão restrita, mesmo assim vale lembrar o tom de relato pessoal. No entender deste leitor, o grande sentido da obra de Herta Müller.
Romenos, ela e Cioran, pedaços de um país desenhado como pátria do fracasso. Cioran, expoente do ceticismo, professa o absurdo aos quatro ventos. Quando decide ir ao encontro de Herta, cai e machuca o joelho. Motivo mais que suficiente para dizer: “Eu a procuro e já caio, logo sou romeno”.
Ensaios autobiográficos tendo a literatura como pano de fundo, feridas incuráveis, o pai que serviu à SS, o fato de começar a escrever após a morte dele, a Romênia e suas idiossincrasias ditatoriais, os métodos da Securitate para atrair espiões, e, o pior, o fato de a polícia secreta continuar viva, mesmo com o fim da ditadura de Ceausescu.
Como disse acima, a literatura é tema recorrente destes ensaios, do mesmo modo que a Securitate se faz presente ao longo da obra de Herta Müller. Mas isso não desabona a obra, muito pelo contrário. A literatura e a vida, infelizmente, ainda precisam de vozes como a de Herta.
Tudo o que tenho levo comigo é o título de outro livro seu, cujo nascimento ela narra num dos ensaios de Sempre a mesma neve, bem como a relação ambígua com o poeta Oskar Pastior, em quem o protagonista do romance foi baseado. Herta descobre que o poeta foi um espião, mas quase todos eram, então o perdoa.
Os ensaios são duros, secos, mas não desprovidos de poesia. A poesia cruel que pode ser “vista” nas pegadas deixadas na neve. Pegadas que não podem ser apagadas e acabam por denunciar o esconderijo de sua mãe. Presa, é levada aos campos de trabalhos na União Soviética junto com Pastior, o poeta.
(…) Muitos se esconderam. Minha mãe já estava sentada havia quatro dias num buraco na terra do jardim do vizinho, atrás do celeiro. Mas veio a neve. Trazer-lhe secretamente a comida ficou impossível, cada passo entre a casa e o buraco na terra se tornava visível. Dava para enxergar por toda a neve, por todo o vilarejo, o caminho para cada esconderijo. Dava para ler as pegadas no jardim. A neve denunciava. Não somente minha mãe, muitos tiveram de sair voluntariamente do esconderijo, voluntariamente obrigados pela neve. E isso significava cinco anos nos campos de trabalhos forçados. Minha mãe nunca perdoou a neve por isso.
Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, ensaios sobre o medo, o medo que nasce na infância e cresce sem envelhecer. O medo que semeia a dúvida: ficar ou partir? O medo, irmão da solidão.
Quando meu corpo me deixa na mão, ensaio sobre a morte de Emil Cioran. Herta começa com a seguinte citação do filósofo romeno (e com ela este aprendiz encerra a resenha): “Toda vez que o tempo me tortura, digo a mim mesmo que um de nós tem de se esgotar, que não é possível se manter infinitamente nesse cruel olho no olho…”.