1. Aproximação (via Manuel Bandeira)
“Tu que penaste tanto e em cujo canto/ Há ingenuidade santa do menino;/ Que amaste os choupos, o dobrar do sino,/ E cujo pranto faz correr o pranto” — com essa estrofe se abre um dos primeiros (e mais famosos) poemas de A cinza das horas, primeiro livro de Manuel Bandeira, publicado em 1917. Intitulado A Antônio Nobre, o poema é estampado logo depois de A Camões, e há entre os dois um brutal contraste: se o último soa frio e artificial, o primeiro parece produto de um lirismo espontâneo e sentido. Treze anos antes, fora em Bandeira diagnosticada a tuberculose que, se não o levaria tão cedo quanto temia o próprio poeta, faria da “indesejada das gentes” sua inseparável companheira na longa peregrinação por sanatórios e “climas saudáveis”. Tudo isso está na poesia de Bandeira, um dos nossos autores nos quais a matéria vivida se faz mais nitidamente presente na obra poética; e Antônio Nobre, o jovem poeta português arrastado pela tísica, surgiria para aquele como um vulto no espelho.
Se tanto Camões quanto Antônio Nobre surgem nos escritos de Bandeira como formas de um “tu” a quem se dirige a subjetividade lírica, no caso do soneto dedicado ao primeiro há uma deferência excessiva, o tom solene de quem esculpe uma obra em preito a um mestre inatingível; já o soneto dedicado a Antônio Nobre é como o sincero desabafo de quem se confessa a um amigo. “Com que magoado olhar, magoado espanto/ revejo em teu destino o meu destino!”, escreve Bandeira, projetando na figura do autor de Só — na figura, ressalte-se, que o autor de Só traçaria de si mesmo, como logo destacaremos —, sua própria, lúgubre trajetória existencial, inscrita entre a dor e a poesia. Mas não era plena a identificação, e isso porque o autor de A cinza das horas, livro publicado numa edição de 200 exemplares (pela qual, aliás, o próprio Bandeira pagara trezentos mil-réis), não esperava para si um destino similar ao de Antônio, a quem a obra garantira a eternidade: “Mas tu dormiste em paz como as crianças./ Sorriu a Glória às tuas esperanças/ E beijou-te na boca… O lindo som!// Quem me dará o beijo que cobiço?/ Foste conde aos vinte anos… Eu, nem isso…/ Eu, não terei a Glória… nem fui bom…”. Bandeira viveria muito mais que Antônio Nobre, e sua obra acabaria conhecendo também a consagração; contudo, obviamente não poderia sabê-lo quando compôs aquele poema, registro de um diálogo com o duplo lírico do poeta lusitano, que tão fortes marcas deixaria no imaginário português (e mais além).
2. Da poesia nobriana
Se aquém e além-mar a poesia de Antônio Nobre não tardaria a alcançar uma grande repercussão, esse impacto está relacionado à mescla de elementos biográficos e literários que, posteriormente, inscreveria o poeta no panteão em que figuram Camões e Garrett, Camilo e Pessanha, entre tantos outros. Nascido no Porto, em 16 de agosto de 1867, e vitimado pela tuberculose com apenas 33 anos, Antônio Nobre teve a curta vida de um inadaptado, tanto no que tange aos meios acadêmicos coimbrãos — comprovam-no as reprovações no curso de Direito que o biógrafo Guilherme de Castilho atribuiria a traços de personalidade como uma “atitude de superioridade desdenhosa” e um “desprezo instintivo por todos os formalismos convencionais” — quanto no que diz respeito ao meio literário — seria alvo de grupos de escritores que o acusavam, por exemplo, de plagiar Guerra Junqueiro. Mas foi o elaborado processo de construção de um multifacetado duplo literário, da personalização nacionalista “Antônio” à trágica e dolente figura de “Anto”— personae que aparecem na abertura e no encerramento de Só, sua perene obra-prima —, o que operou como eficaz estratégia literária para sintetizar constelações temáticas pós-românticas, simbolistas e decadentistas, mesclando-as com elementos biográficos, o que propiciaria leituras empáticas como a de Manuel Bandeira.
Publicado em duas edições durante a vida do poeta, Só é uma obra que ainda apresenta instigantes desafios para a crítica. As diferenças de organização entre as edições de 1892 e de 1898, bem como as supressões e acréscimos textuais, sugerem diferentes possibilidades para a leitura deste livro que a intenção poética, sem dúvida, concebeu como uma obra organicamente estruturada. A tarefa de interpretar o capital volume — “Que é o livro mais triste que há em Portugal!”, como afirma o famoso verso final de Memória, espécie de registro lírico-prefacial que, a partir da segunda edição, funciona como peça de abertura —, a um tempo crônica poética de uma subjetividade e de um povo, recebe valioso auxílio por conta das inúmeras notas preparadas por Annie Gisele Fernandes e Helder Garmes para a edição aqui comentada, esclarecendo referências biográficas, históricas e culturais. Os poemas compostos posteriormente à primeira edição de Só, e não incorporados à versão de 1898 por decisão autoral, foram reunidos em Despedidas, livro publicado em 1902 (portanto, já após a morte do poeta) por seu irmão, Augusto Nobre. As dificuldades suscitadas pela leitura de Despedidas são outras que não as que impõem a leitura de Só: no caso do livro póstumo, assume relevo o fato de se tratar sobretudo de uma compilação de poemas nos quais assoma a condição inacabada. Não obstante, trata-se de uma obra importantíssima, seja pelo inconcluso épico O desejado, seja por belíssimos poemas, como o soneto Adeus a Constança.
Pelo esmero com que foi preparada, pela rica apresentação, pelas preciosas notas, pela Bibliografia básica e pelo Vocabulário auxiliar apensos ao volume, a publicação de Só (seguido de Despedidas) vem responder à perene demanda por edições bem cuidadas de obras de indiscutível importância, tanto para os leitores exigentes quanto para aqueles que se dedicam aos estudos literários. Cabe enfatizar, a propósito, que essa demanda vem sendo muito bem atendida pela coleção Clássicos Ateliê, dirigida por Ivan Teixeira e Paulo Franchetti, da qual faz parte a obra comentada.