Groucho

Conto de Ana Santos
Ilustração: Felipe Rodrigues
01/06/2012

Na capela as presenças são esparsas e as luzes baixas, era mesmo uma pessoa muito boa, nunca fez mal a ninguém, nunca feriu uma mosca, coitado, coitado. O cadáver usa bigode ultranítido sobre a carne exangue — dir-se-ia um Groucho não-risonho, de algodão nas narinas, e como é que a criatura vai respirar assim, pensa Lúcia e estala a língua acre, ébria.

Ela senta-se, as pernas muito juntas, o lenço no regaço, as mãos abertas nos joelhos, a mirar obstinada os dedos. Então se põe de pé ao lado do defunto e beija-lhe o rosto de olhos, de nariz e de boca, e por onde foi que a vida escapuliu se está tudo tão fechado?

Se Lúcia mordesse o morto agora, se Lúcia mordesse com vontade, ia sair sangue de água, insípido. A pele não é fria — nem morna, nem quente —, é de temperatura que não está em livro, e mesmo que estivesse ela não sentiria.

Quando eu te olhava às vezes, Júlio, quando tu estavas falando, quando tu estavas comendo, eu te pensava no escuro e devorado por bicho, e pra onde vai o Júlio falando, e pra onde vai o Júlio comendo, e não é a coisa mais esquisita?

(O carteiro marcaria com um X: falecido.)

É fim de outono e chorar seca gelado, forma caminhos de caracol.

Chove uma chuva sem trovão, num murmúrio, alto o bastante apenas para encharcar sapatos. Há pegadas úmidas sobre o piso, e os pés de Lúcia são gelo dentro das meias.

De súbito todo o mundo tem um cheiro enjoado de flor, a viúva vai vomitar, corre pra acudir a viúva, a viúva veio pro velório de pileque. A viúva vomita, de fato, emporcalhando (desavergonhada) as botas, mas a cunhada (que é prestativa) vai limpar tudo.

Lúcia olha os sapatos do Júlio morto, Júlio César de Souza, 56, gostava de panqueca e de filme de faroeste, tinha medo de gato, dormia de bruços, uns sapatos bem pretos bem lustrosos, limpinhos, guardados por anos, apenas mudados de caixa.

Ana Santos

Nasceu em 1984, em Porto Alegre (RS). Publicou o livro de contos O que faltava ao peixe (Libretos), em 2011. Estreou na poesia em 2017 com Móbile (Patuá), finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2018. Com Fabulário (2019), venceu o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria Poesia.

Rascunho