Na capela as presenças são esparsas e as luzes baixas, era mesmo uma pessoa muito boa, nunca fez mal a ninguém, nunca feriu uma mosca, coitado, coitado. O cadáver usa bigode ultranítido sobre a carne exangue — dir-se-ia um Groucho não-risonho, de algodão nas narinas, e como é que a criatura vai respirar assim, pensa Lúcia e estala a língua acre, ébria.
Ela senta-se, as pernas muito juntas, o lenço no regaço, as mãos abertas nos joelhos, a mirar obstinada os dedos. Então se põe de pé ao lado do defunto e beija-lhe o rosto de olhos, de nariz e de boca, e por onde foi que a vida escapuliu se está tudo tão fechado?
Se Lúcia mordesse o morto agora, se Lúcia mordesse com vontade, ia sair sangue de água, insípido. A pele não é fria — nem morna, nem quente —, é de temperatura que não está em livro, e mesmo que estivesse ela não sentiria.
Quando eu te olhava às vezes, Júlio, quando tu estavas falando, quando tu estavas comendo, eu te pensava no escuro e devorado por bicho, e pra onde vai o Júlio falando, e pra onde vai o Júlio comendo, e não é a coisa mais esquisita?
(O carteiro marcaria com um X: falecido.)
É fim de outono e chorar seca gelado, forma caminhos de caracol.
Chove uma chuva sem trovão, num murmúrio, alto o bastante apenas para encharcar sapatos. Há pegadas úmidas sobre o piso, e os pés de Lúcia são gelo dentro das meias.
De súbito todo o mundo tem um cheiro enjoado de flor, a viúva vai vomitar, corre pra acudir a viúva, a viúva veio pro velório de pileque. A viúva vomita, de fato, emporcalhando (desavergonhada) as botas, mas a cunhada (que é prestativa) vai limpar tudo.
Lúcia olha os sapatos do Júlio morto, Júlio César de Souza, 56, gostava de panqueca e de filme de faroeste, tinha medo de gato, dormia de bruços, uns sapatos bem pretos bem lustrosos, limpinhos, guardados por anos, apenas mudados de caixa.