A cena se passa em torno da mesa. O velho cego e os quatro filhos, todos homens. A refeição é tensa. Paulino Duarte, o velho, interroga um dos filhos, Quincas. Não concorda que ele traga uma mulher para casa. As peles são escuras; os rostos, duros; as mãos, calejadas. As palavras são ditas lentamente. Tudo pesa. Tudo é muito grave.
Para Paulino, a mulher de Quincas traz à lembrança um passado nebuloso, que ele precisa ocultar. Os filhos, todos muito rudes, não compreendem o pai. Não compreendem por que o pai tanto teme Ângelo, o quinto filho, ausente da ceia. Não compreendem sobretudo o mistério que cerca a morte da mãe.
É com mais ou menos essa mão que Adonias Filho abriu Os servos da morte, seu romance de estréia, em 1946.
Adonias nasceu em 1915, no sul da Bahia, na zona do cacau. Mas a paisagem cacaueira é apenas um elemento incidental, que dá mais sombra às cenas — cheias de latidos ferozes, gritos lancinantes, corredores escuros, lama, umidade, relâmpagos, ruídos cavos de árvores caindo.
São os instintos humanos mais elementares que movimentam as personagens de Os servos da morte. Elisa, a mulher de Paulino, se casa para resolver o problema financeiro da família. Depois de anos suportando a brutalidade excessiva do marido (que, órfão, criou-se entre cães de caça), vendo os filhos crescerem como herdeiros legítimos da ferocidade paterna, concebe uma grande vingança — vingança essa que, após sua morte, será realizada por Ângelo, o caçula.
Esta é, digamos, a vingança central. Mas todo o romance é uma trama de vinganças. A atmosfera é de loucura e de ódio; as personagens são violentas, passionais; e parecem acossadas por um destino mau, uma danação.
São essas as características, associadas à linguagem solene do livro, que aproximam a ficção de Adonias das tragédias gregas e de algumas passagens do Velho Testamento.
Com Os servos da morte, Adonias Filho contribuiu de forma decisiva para uma das maiores criações ficcionais da literatura brasileira: o sertão. Poucos escritores de temática urbana — com suas personagens médias e desajustadas, seus enredos vazios de ação — alcançaram o vigor e a originalidade do chamado regionalismo, de que não se pode excluir Guimarães Rosa.
Tenho por mim que é justamente por constituir um mundo arcaico, antropologicamente dissonante do universo “civilizado” (não dou a esse termo nenhum valor especial), que as possibilidades literárias do sertão se ampliam muito.
Adonias compreendeu isso muito bem. Seus livros, orgânica e estilisticamente semelhantes, estão entre os melhores da ficção universal: Memórias de Lázaro (história de um homem que volta a um vale semi-selvagem para retomar a história trágica do pai); Corpo vivo (romance de um menino que escapa de uma chacina e se torna depois um grande vingador); As velhas (saga de Tonho Beré, que parte por ordem da mãe para buscar os ossos do pai, morto 20 anos antes); ou até mesmo O forte, que — embora se passe na cidade — tem o mesmo clima misterioso e trágico dos outros.
Os servos da morte, com uma apresentação de Afrânio Coutinho, integrou a antiga coleção Prestígio, da Ediouro. Esta edição é muito fácil de encontrar nos sebos, a um preço médio de R$ 7. Conheço ainda edições da Difel e da Civilização Brasileira, feitas entre 1975 e 1986. Também não são difíceis de achar e não podem custar mais de R$ 20.
NOTA
O texto acima foi publicado em 28 de abril de 2007 na coluna Manual de garimpo, que circulou entre abril de 2007 e abril de 2008 no Caderno Idéias do extinto Jornal do Brasil. Na próxima edição, Alberto Mussa escreve sobre Os caboclos, de Valdomiro Silveira.