Razões do neutro

Leda Tenório da Motta faz uma defesa veemente da obra de Roland Barthes
Roland Barthes, escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês
01/07/2012

A fim de anunciar a singularidade da obra de Roland Barthes, Leda Tenório da Motta abre o recém-publicado Roland Barthes: uma biografia intelectual referindo-se ao desenho de “um certo Maurice Henry” no qual se observam, vestidos apenas com uma tanga e portando pulseiras e braceletes, Foucault, Lacan, Lévi-Strauss e Barthes. Eles estão sentados em roda no chão de uma floresta, debatendo e estudando. Foucault discursa alegremente, observado pelo olhar desconfiado e irônico de Lacan e por um Barthes distraidamente atento, enquanto Lévi-Strauss ocupa-se em ler para si o que tem em mãos.

O humor provocado pelo desenho explica-se principalmente pelo deslocamento do espaço próprio ao debate intelectual. Tudo aí aponta para um paradigma antropológico como marca de grupo. Grosseiramente falando — como grosseiramente fala qualquer caricatura —, são índios esses intelectuais que debatem na mata quase despidos e que propuseram modernizar o pensamento francês trazendo a questão da linguagem para o centro do debate, considerando-a ao mesmo tempo lugar e limite do pensamento. O desenho intitula-se “A moda estruturalista”, e ironiza de uma só vez a vestimenta indígena e a repercussão supostamente exagerada dos conceitos desses quatro intelectuais.

Some-se a isso a analogia entre esse desenho e uma importante pintura de Édouard Manet, de 1863, na qual vemos também quatro pessoas, igualmente sentadas sobre a relva de um bosque,conversando. Mas na tela do pintor observa-se um contraste na “moda” dos personagens que foi amenizado no desenho dos intelectuais: dois homens engravatados, paletó preto, sentam-se e conversam com naturalidade ao lado de uma mulher nua, com olhar fixo para o espectador; ao fundo, uma segunda mulher banha-se na lagoa, erguendo acima dos joelhos o leve vestido a fim de refrescar as pernas.

O tema do contraste naturalizado entre nu e vestido em cenário campestre é antigo na história da pintura. Por isso, de acordo com a leitura do crítico italiano Giulio Carlo Argan, ao pintar “O piquenique no bosque”, Manet despreocupa-se com o aspecto narrativo da cena, não sugere verossimilhança na atitude das figuras, pois está mais interessado em elaborar “um material compositivo e temático que pertence à história da pintura”. É possível que, por via torta, tenhamos chegado a uma questão parecida com a qual se debruçava Roland Barthes no começo de sua carreira.

Não à toa, são escritores franceses contemporâneos a Manet que instituirão, de acordo com o primeiro livro de Barthes, O grau zero da escritura (1953), o problema da literatura contemporânea, mais especificamente da literatura que se produz na França em período pós-Guerra. Enquanto em Flaubert o estilo é produto de um trabalho — de modo que, segundo Barthes, “a forma torna-se assim o termo de uma ‘fabricação’, como uma cerâmica ou uma jóia” —, na obra do poeta Mallarmé a linguagem seria destruída na composição do poema, de modo que “a literatura seria, de algum modo, o cadáver”. Assim, o pertencimento à história da literatura, para adotar os termos de Argan, é conquistado ao preço da própria linguagem.

Aqui ainda não há novidade, pois encontramo-nos diante de um problema geral a partir do qual se inicia a obra barthesiana. A estratégia de Leda Tenório é, nesse sentido, extremamente interessante: busca lidar com a especificidade da obra do francês e, ao mesmo tempo, ao defendê-la, Leda em alguns momentos parece advogar por uma causa, o que dá a certas passagens do livro um tom de veemência que, apesar dele mesmo, não convence.

É que, apesar do subtítulo “uma biografia intelectual”, a autora não acompanha cronologicamente a carreira do crítico estudado. Na abertura do livro intitulado Roland Barthes por Roland Barthes (1975), ao tratar da dificuldade em narrar a própria vida, Barthes propõe que “não há biografia a não ser a da vida improdutiva”. Afinal, para ele, a experiência de escrita “despoja” o autor do tempo cronológico. Ora, o livro de Leda propõe antes de tudo biografar um conceito: o Neutro. Para isso, dedica-se a apresentar sobretudo, mas não apenas, dois livros iniciais da carreira de Barthes (o já citado O grau zero da escritura e Mitologias, de 1957), verificando como eles estabelecem paradigmas de abordagem da literatura e das linguagens sociais que vão se irradiar por toda a obra do autor no sentido da explicitação do Neutro.

Trata-se de um conceito que amarra do início ao fim a obra barthesiana e que inscreve uma diferença entre essa obra e o grupo estruturalista, do qual Barthes seria o membro “mais errático, hesitante, contraditório”, nas palavras de Leda. Em lugar de significar por oposições, no paradigma próprio da lingüística de Saussure que informa a escola estruturalista, “o Neutro quer subtrair-se a essa produtividade, é explosão, sobressalto, recuo da ‘estrutura’”. É por isso, por recusar-se a produzir significados — operação própria ao Mito —, que a escritura neutra é, em alguma medida, uma escritura biográfica, ambas marcadas pela improdutividade.

Será preciso considerar, portanto, a questão colocada por Leda Tenório no momento em que se debruça sobre a elaboração do conceito de Neutro. A autora recorre ao período de anos que Barthes passou internado num sanatório na Suíça, período esse que coincide com a Segunda Guerra Mundial.

Que pode ter significado para o jovem Barthes, tão cioso do peso da História, passar toda a guerra, todo o período da Ocupação, todo o período da Resistência no isolamento, naquela espécie de vida entre parênteses que foi a sua vida sanatorial, por tanto tempo, nos jovens anos?

Ouvem-se aqui, atravessados, dois signos curiosos: a tradicional neutralidade da Suíça durante a Guerra e a leitura — que tanto praticou no período de sanatório — como afecção do sujeito. Por esse enquadramento, o Neutro é a escrita da leitura sanatorial, período em que a doença convive com certa saúde, e uma determinada guerra deflagra-se durante certa paz. Não há cura alguma, nem pacificação produzida pela literatura. Seu efeito é antes o de proporcionar um lugar de fala — ao leitor, ao escritor —, o que é um pouco diferente de legar um discurso. Parece ser isto o que tem em vista Barthes quando defende que cada leitor, ao ler um romance, reescreve o livro, ou quando se propõe, ao final da carreira, a fazer da leitura uma pesquisa fantasmática, perseguindo as imagens de sua obsessão em textos díspares, como o realiza em Fragmentos de um discurso amoroso (1977).

O mesmo faz Leda Tenório, de maneira clara e direta, na “Nota prévia” do seu livro, em que assume a voz de testemunha que foi das aulas de Roland Barthes. A primeira frase que se lê é: “Eu estava entre as pessoas que se aglomeravam na porta do Collège de France, certa manhã de março de 1980, diante do aviso de que a aula de Roland Barthes havia sido suspensa”. Poucas linhas abaixo, lê-se: “Três anos antes disso, eu também estava naquela última aula de Barthes na École des Hautes Études…” Esse tom de meninos-eu-vi localiza a obra de Leda — que é uma crítica literária extremamente produtiva, publicando recorrentemente livros sobretudo dedicados às letras francesas — no âmbito dos professores que, no Brasil, se dedicam a elaborar um modo de ler a literatura fundado em um paradigma menos sociológico e mais, digamos assim, antropológico. À sua maneira, essa diferença de paradigmas pode ser observada, por exemplo, nas trajetórias de Silviano Santiago e de Leyla Perrone-Moisés — aquele inoculado pelo vírus Derrida (conforme afirmou em recente palestra), esta tendo estudado com Barthes, traduzido e organizado sua obra no Brasil, e produzido interpretações importantes de autores brasileiros, como Osman Lins, sob efeito da obra barthesiana.

Com isso, resta a expectativa de ver a obra de Leda Tenório produzir mais efeitos sobre a literatura brasileira, pois, trabalhando estrategicamente num cânone restrito de autores, todo ele francês, abre exceção apenas, “por motivos óbvios” mas não explicitados, a Haroldo de Campos, que aparece neste livro como a única ressonância brasileira da obra de Barthes, pois em ambos se verificariam: “mesmas bases semióticas, mesma visão do tempo longo, mesma inclinação a confundir crítica e literatura, mesma tomada de distância em relação aos ‘escritores, intelectuais, professores’ bem instalados em sua autoridade”. De maneira insuspeita, a defesa da alta exigência na constituição de um cânone pessoal pode acabar por levar o crítico a repetir, com insistência, o “mesmo”.

Roland Barthes: uma biografia intelectual
Leda Tenório da Motta
Iluminuras
288 págs.
Leda Tenório da Motta
É professora de Comunicação e Semiótica na PUC, em São Paulo, e dedica-se a pesquisar sobretudo autores da literatura francesa. Seu último livro, Proust: a violência sutil do riso, recebeu o Prêmio Jabuti de crítica literária em 2008.
Luiz Guilherme Barbosa

É especialista em literatura.

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