A fúria certeira da escrita

O catarinense Marcelo Labes constrói uma obra que questiona de maneira incisiva a sociedade e investiga as muitas faces do humano
Marcelo Labes, autor de “Deus não dirige o destino dos povos” Foto: Isadora Nicoladeli
01/11/2023

O título Deus não dirige o destino dos povos, novo romance de Marcelo Labes, zomba — sem quaisquer meias-palavras — de uma das máximas de Plínio Salgado no Manifesto integralista de 1932. A galhofa, obviamente, fica por conta do nada singelo “não” incluído no título da narrativa do escritor catarinense nascido em Blumenau, em 1984. A referência ao integralismo puxa outras tantas para abordar também o nazismo, a Era Vargas, o golpe militar de 1964 e a grande greve ocorrida em Blumenau em 1989 — quando milhares de trabalhadores das indústrias têxteis da região foram às ruas por melhores salários.

Filho de um operário e de uma empregada doméstica, Labes busca, a partir da literatura, não só questionar a sociedade do Vale do Itajaí e sua formação de ascendência alemã, mas perscrutar as muitas faces do humano e, como não poderia deixar de ser, entender o seu lugar no mundo.

“Não escrevo somente contra a cultura criada e imposta daquele lugar, mas também contra sua geografia. Ambas, cultura e geografia, fizeram-me acreditar, por muito tempo, que meu destino era aquele. E, para mim, aquilo era muito pouco”, diz Labes nesta entrevista concedida por e-mail.

Após oito livros de poemas, em 2020, a literatura de Labes ganhou visibilidade nacional ao vencer o prêmio São Paulo com Paraízo-Paraguay, seu romance de estreia. Um ano depois, Três porcos ganhou o prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. Ambos os livros foram lançados pela Caiaponte, editora fundada por Labes. “A ideia de ter uma editora independente era essa, primeiro: atravessar as filas e os possíveis conluios dentro de grandes editoras que fazem ou não um livro ser publicado. Consegui”, diz.

Marcelo Labes comenta ainda sua trajetória a partir de Santa Catarina e os assuntos que o rondam o tempo todo, sempre impulsionados pela “neurose e pelo rancor que acabam por virar texto”.

• A opressão do estado — por ditaduras ou governos de extrema direita — está no centro de Deus não dirige o destino dos povos. E há referências diretas ao governo de Jair Bolsonaro. Como fugir do panfletarismo ao abordar temas que, muitas vezes, geram acalorados debates?
Deus não dirige o destino dos povos conta a história de um lugar e de seu povo ao longo de mais de oitenta anos, e há diversos conflitos ali: Estado x falantes de língua alemã, nazistas x FEB, nazismo x integralismo, esquerda x ditadura, trabalhadores unificados x peleguismo… Bolsonaro é apenas mais um personagem numa história de opostos em que quem tem o apoio do Estado, das igrejas e do grande capital acaba vencendo. Se a história de Tomás começa e termina em 2018 é porque precisava me afastar dos anos terríveis de caricatura de governo ou de um governo assumidamente incapaz, como foi durante a pandemia o governo Bolsonaro. Meu personagem, como eu próprio, não acreditava que fosse possível que um néscio assumisse a presidência da república. Então, a resposta talvez esteja aí: buscar as origens de Bolsonaro, algo que explicasse a sua ascensão ao Palácio do Planalto, talvez fosse uma forma de lidar com esse exercício irresponsável de poder, do qual fomos todos espectadores e vítimas, sem precisar narrar as bizarrices cotidianas — isso, me parece, seria bem panfletário —, mas contar uma história outra, anterior, completamente ligada a essa que vivemos em nossos cotidianos e que muitas vezes deixamos escapar.

• Você acredita que ser escritor é um ato político, no sentido de que seu trabalho tem ressonância na sociedade?
Acredito que toda forma de expressão artística é política, ainda que muitas vezes isso escape até mesmo ao artista em questão. Mas penso ser diferente a política natural à Arte dos posicionamentos críticos, esses elegíveis, que o autor toma para si. Nesse sentido, tenho conseguido nesses últimos anos alcançar pessoas de formas muito diferentes; seja o leitor catarinense, que me procura para me dizer que se encontrou nas páginas dos meus livros, seja de leitores de todos os lados do país que vêm me dizer que não tinham a menor ideia de que tivesse havido até pouco tempo atrás um pedaço de Brasil tão deslocado desse Brasil, como o Vale do Itajaí e seus arredores. Assim, ao alcançar um público leitor localizado — e me fazer entender por ele —, e ao alcançar um público geograficamente distante, vejo que, sim, meu trabalho ressoa. Ainda que de forma humilde, mas ressoa.

• Perpassa seus livros, tanto de poesia como os romances, uma contundente crítica à sociedade que compõe as cidades do Vale do Itajaí, em especial Blumenau. O que mais lhe incomoda na chamada “ascendência europeia” da sociedade catarinense?
Eu nasci e me criei no que chamo de Vale Profundo, no último bairro ao sul de Blumenau, onde as montanhas de um lado e de outro do ribeirão quase se tocam. Meu pai foi operário na Artex até se aposentar, e esse é o primeiro tema: tudo no bairro girava em torno da fábrica. Quando veio Collor e a consequente abertura econômica, o dono dessa fábrica (uma espécie de semideus populista) não hesitou em reformular todo o programa de empregos e demitir centenas de funcionários. Quanto ao pai, ele manteve certos hábitos, e um deles foi o de jantar à meia-noite (como fazia na fábrica) por todo o tempo restante que teve. Não era raro encontrá-lo no meio da casa indo beliscar alguma coisa da geladeira. Minha mãe, por sua vez, trabalhou como empregada doméstica desde cedo. Conheci, através dela, dezenas de apartamentos, umas quantas casas, e cuidei dela quando precisou colocar parafusos de titânio na coluna. Por minha experiência doméstica e pela experiência comum, nunca me foi possível ver o trabalho árduo, essa questão tão cara aos descendentes de europeus, como uma grande causa. Pelo contrário, vi desde cedo o que vinha dali: neuroses, dores e humilhações contínuas. O discurso vigente no Vale do Itajaí, e que atravessa grande parte do sul do Brasil, é esse de um trabalho que pode não garantir sossego financeiro ao fim da jornada, mas que certamente acertará as contas com Deus (Weber já falava disso) e com a própria comunidade. Outro tema é o da germanidade postiça. Com a perseguição de Vargas às ex-colônias alemãs, italianas e japonesas, muito se perdeu no que diz respeito à cultura, ao idioma etc., mas também se permitiu, uma primeira vez, que esses descendentes de colonos fossem confrontados com o Brasil. Esse diálogo deu mais ou menos certo até a década de 1970, quando Blumenau inicia a “neogermanização” da arquitetura do centro da cidade e começa a se preparar para o que viria a ser a Oktoberfest. É a partir da criação da festa que a cidade sucumbe a um discurso neogermânico de negação de muitas questões nacionais, como o Carnaval, as religiões afro-brasileiras, e passa a adotar um discurso xenófobo que perpassa classes, crenças, credos. Não posso dizer que tenho um problema com os alemães que vieram para o Brasil no século 19, mas tenho, certamente, com o discurso que se fez e se faz dessa imigração, da construção da cidade e da manutenção do mito fundador do bom imigrante, o desbravador, o herói. Como todo mito fundador, penso que esse também precisa ser destruído.

• Tomás, personagem de Deus não dirige o destino dos povos, é o típico brasileiro que acredita na educação para ascender socialmente. Mas a precariedade da educação no Brasil não fragilizaria esta visão um tanto utópica?
Tomás, em sua ascensão, só consegue deixar Blumenau e chegar a Florianópolis para assumir uma cadeira medíocre num jornal duvidoso. O que sabe — e sabemos que sabe pela sua capacidade de pesquisa — vem de fora da academia. Logo, é uma afirmação que traz consigo a própria negativa: mesmo a educação de Tomás é frágil, como é frágil toda formação num país que não consegue absorver tantos graduados, mestres e doutores que deixam a universidade desempregados todos os anos.

• Por outro lado, a ignorância parece ser o moto-contínuo para perpetuar o poder, conforme se avança na leitura de Deus não dirige o destino dos povos. Como a ignorância molda uma “sociedade perfeita” aos poderes econômicos e políticos?
Não parece haver fórmula perfeita, mas é possível especular. O poder da religião — e não é só do neopentecostalismo que falo; a limitação de acesso à educação em todos os seus níveis; o desmonte das instituições de defesa de trabalhadores enquanto entidades combativas; o acesso a bens de consumo, tudo isso faz parte da fórmula. Até os meus doze anos, os melhores presentes de Natal que eu e todas as crianças filhas de operários recebíamos eram retiradas numa sala comercial que a fábrica mantinha para esse fim. Os brinquedos vinham por idade e gênero, e eram, para a tranquilidade de nossos pais, os melhores presentes da época. O operário que não se atrasasse nenhuma vez durante o mês de trabalho ganhava um tanto de retalhos de tecidos para fazer roupas de cama ou de vestir. Um outro detalhe era a cooperativa de consumo, um supermercado onde o trabalhador podia comprar a prazo, tendo o valor das compras descontado na folha de pagamento do mês seguinte. O sindicato pelego ainda oferecia serviço de saúde e odontologia. Difícil, com esse cenário, prever o que aconteceria em 1989.

• A máxima de Lampedusa “Tudo deve mudar para que tudo fique como está” pode ser um caminho para entender o Brasil desde sempre?
Sem dúvida. O Brasil é um belo retrato dessa máxima, desde a invasão. Se focarmos no século 20, isso fica claro com um exemplo, dentre muitos: Vargas, o “pai dos pobres”, que assina a CLT, em 1943, garante que esta seja uma cópia adaptada da Carta del Lavoro fascista, de 1927. Isso num momento em que a modernização do Brasil enchia as fábricas de trabalhadores, muitos deles com ideais libertários. Pois surgem os sindicatos. Ora, para que mais limitador das vontades do povo trabalhador do que cercá-lo de órgãos que falem por ele e que não o escutem?

• O narrador de Três porcos diz “Eu escrevo para me vingar. Porque justiça é um cálculo por demais subjetivo”. Por que você escreve? A vingança é também um dos motivos?
Escrevo porque preciso, e isso realmente não é algo fácil de explicar. Ao mesmo tempo, escrevo para ver se ajudo alguém como eu mesmo fui ajudado, desde a leitura de Meu pé de laranja lima, do José Mauro de Vasconcelos, na infância, quando aprendi o que a literatura podia fazer comigo, até a leitura de uma crônica de Ruy Proença, quando da morte de Philip Seymour Hoffman, que me fez ficar sóbrio nesses quase dez anos — Hoffman morreu em fevereiro de 2014. Além disso, há as minhas outras questões: o lugar de onde venho parece arrancar das pessoas o que elas têm de criativo. Primeiro, há esse tema da germanidade postiça. Depois, a questão do trabalho e do ascetismo religioso. Além disso, a paisagem: morros por todos os lados, um rio que extravasa a calha e retorna a ela, volta e meia. Não escrevo somente contra a cultura criada e imposta daquele lugar, mas também contra sua geografia. Ambas, cultura e geografia, fizeram-me acreditar, por muito tempo, que meu destino era aquele. E, para mim, aquilo era muito pouco.

• Em Três porcos, lemos “Porque a arte, me dizia Ratazana, precisa de amor, mas precisa de ódio. Do contrário, é apenas entretenimento”. Levando esta afirmação em consideração aos seus livros, pode-se dizer que você foge o tempo do “apenas entretenimento”?
Eu não gosto de pensar que minha literatura seja funcionalista, que precise de um porquê sociológico para existir. Mas não consegui, até agora, criar um texto literário que andasse muito longe de onde eu mesmo pisei e piso, seja tratando das questões do Vale, seja tratando das minhas próprias, como em Três porcos ou em Evangélica, o original no qual venho trabalhando. Desde o planejamento até o momento posterior de escrita e reescrita, uma dúvida permanece me rondando a cabeça: “Mas afinal, de que vai valer esse texto?”. É perseguindo essa resposta que prossigo no meu trabalho.

Marcelo Labes Foto: Isadora Nicoladeli

• E qual seria o ódio que mais impulsiona a sua criação literária?
Outro dia, enquanto falava para uma turma de estudantes, uma menina me perguntou acerca do título de Deus não dirige o destino dos povos. Respondi dizendo que se tratava de uma galhofa com a máxima integralista, frase que abre o Manifesto de 1932, de Plínio Salgado, que diz “Deus dirige o destino dos povos”. Vivendo no Brasil, vemos que há pouco de Deus e muito mais de política e de dinheiro decidindo nosso futuro, apertando nosso presente, soterrando nosso passado. Se eu sou fulo da vida, é com essas pessoas, as que decidem — e decidem muito mal, sempre — os caminhos de onde viemos e para onde vamos. Mas como não poderia ser apenas isso, tenho meus rancores pessoais, minhas neuroses impossíveis de tirar no banho. Essas, deixo ali em repouso até a hora certa. Como costuma acontecer, a hora certa chega e a neurose, o rancor, acabam por virar texto.

• Três porcos aborda pedofilia e abusos sexuais — assuntos muito comuns na imprensa nacional. A bestialidade humana é uma das suas maiores preocupações ao escrever ficção?
Não diria a bestialidade humana. Prefiro pensar que trabalho as faces do humano. Assim me dizem as pessoas sobre Wilhelm, o personagem de Paraízo-Paraguay, que é primeiro odiado para depois protagonizar seu momento de redenção diante da própria história. Ou Jurgen, o personagem de Deus não dirige o destino dos povos, a respeito de quem me dizem nunca terem pensado em se solidarizar com um nazista. Mesmo em Três porcos, Rafael, o protagonista, é vítima e algoz, a depender do momento. Esses vários lados que habitam as pessoas é que me interessam.

• No brevíssimo epílogo de Três porcos, há uma foto sua na infância e a impactante frase: “Todos os dias, sinto vontade de abraçar o menino que fui”. O que a infância representa para você? Você concorda com a afirmação do Enrique Vila-Matas de que “a infância é uma batalha perdida”?
Minha infância ainda me é um mistério. Há muito de dor lá atrás, mas há muita beleza também. Sendo dolorida e bela, depende da maneira de olhar para trás constrói um possível retrato atual sobre o que foi. Então discordo de Vila-Matas: somente se perde essa batalha quando se deixa de procurar na memória (e, a partir dela, decidir) o que a infância de fato representa.

• Você acredita que toda ficção é, em alguma medida, uma espécie de autobiografia do autor?
Não tem como não ser. Se por um lado a autoficção entrega logo de cara que quem escreve o faz a partir de si, os demais subgêneros do romance acabam delatando as angústias e neuroses de quem escreve. Por mais que o autor tente se esconder atrás de tramas e personagens, em algum momento ele se permite vir à tona. Ao leitor, claro, cabe saber investigar.

• Enclave (poesia) e Deus não dirige o destino dos povos (romance) têm uma ligação ao discutir questões como imigração, construção da sociedade a partir de descendentes europeus, história do Brasil, o horror das guerras. São livros que se complementam? No seu caso, você acredita que alguns assuntos só podem ser mais bem discutidos num texto mais longo, como o romance?
Foi exatamente o que tentei fazer, mas a genealogia é diferente. Paraízo-Paraguay é filho de Enclave, enquanto Deus não dirige o destino dos povos é primo de Paraízo-Paraguay. O que houve aqui é que quando Enclave passou a ser comemorado como um livro que critica o sul, e eu era esse crítico, muitas questões passaram a me incomodar, e uma delas, talvez a mais importante, é de como o restante do país para diante das primeiras questões sulistas — ou catarinenses, para falar de onde escrevo —, como o neonazismo, o bolsonarismo e outros ismos infelizes, e não vai adiante para ver o que mais há por aqui: pobreza, favelas, dificuldade em acessar as poucas universidades públicas em seus raros campi, um coronelismo político que extrapola os limites de direita e de esquerda e uma herança de silêncios que temos de levar adiante. Ou seja: Brasil puro. Meu trabalho em Paraízo-Paraguay foi o de mostrar uma história de imigração sem heroísmo algum e que culminou na história de meu pai — homem branco, de olhos claros, sotaque carregado do alemão trazido de casa, mas ao mesmo tempo com somente o primário realizado na escola e operário da fábrica mais próxima boa parte de sua vida. Não esteve com integralistas nem nazistas, não era um racista ou um xenófobo. Era um trabalhador humilde e pisador de chão de fábrica, além de torcedor do Fluminense e pai de três filhos. Ele, como a maioria, não entra na caricatura que se faz de Santa Catarina e que Santa Catarina faz de si mesma. Já sobre Deus não dirige o destino dos povos, ele preenche lacunas que deixei intencionalmente em Paraízo-Paraguay. Nele quis falar exatamente de integralismo, sobretudo, mas de nazismo, da Era Vargas, do golpe de 1964 e da grande greve ocorrida em Blumenau, em 1989. E tentar demonstrar, num romance, como o fascismo à brasileira foi e continua sendo extremamente perigoso, exatamente por vir agindo silenciosamente desde pelo menos a década de 1940 e aparecendo em raras ocasiões. Bolsonaro foi apenas uma dessas ocasiões. As questões abertas em Paraízo-Paraguay e em Deus não dirige o destino dos povos me exigiram uma abordagem prosaica. Precisava delimitar algumas questões e abrir outras tantas, mas com a garantia (como se houvesse garantia) de que daria conta de que não se tornariam apenas máximas, mas temas refletidos por mim e por quem me lê. E disso a poesia, a minha poesia, não dá conta. Espero que a minha prosa dê.

• Com a hiperconexão gerada pelo mundo digital, houve um certo esboroamento dos chamados grandes centros, apesar de que estar em São Paulo e no Rio de Janeiro ainda tem certa vantagem. Como é dedicar-se à literatura a partir de Santa Catarina? E o que é Santa Catarina?
O fato de ter criado uma editora me ajudou em muitos sentidos, e um deles foi ter o valor integral da venda dos livros para mim, mesmo que o número de vendas seja humilde diante do que vendem as editoras grandes. Mas estar aqui é bom: reconheço meus pares, acompanho seus trabalhos e tenho o meu acompanhado por eles. Um exemplo da importância de estar aqui é que nas campanhas de financiamento coletivo, Santa Catarina sempre lidera na lista de apoios. Depois é que vêm São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul… Dá algum conforto ser um autor catarinense vivo, reconhecido e que está produzindo exatamente agora, como estou, e saber que o que escrevo alcança as pessoas. E sei que alcança porque elas me dizem — por e-mail, por mensagens no Instagram, na rua. O mais interessante é falar de Santa Catarina. Blumenau está a apenas 130 quilômetros daqui e é outro estado. Joinville está um pouco mais do que isso e é outro estado também. O meio-oeste, o oeste, o sul, cada um é um estado. É como se essa unidade federativa fosse completamente porosa: nada nos une a ponto de nos reconhecermos e nada dos distancia a ponto de não pertencermos a este lugar.

• Você venceu dois importantes prêmios literários: o São Paulo de Literatura e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. Isso, possivelmente, abriria portas em grandes editoras para sua obra. No entanto, você continua publicando pela sua editora, a Caiaponte, por meio do apoio de campanhas de financiamento coletivo. Por que esta opção pela publicação, digamos, independente, com todas as dificuldades implicadas?
Eu publico livros para viver, esse é o primeiro ponto. Se tenho um livro terminado, preciso que ele seja impresso e vendido para pagar as minhas contas. Paraízo-Paraguay foi segundo colocado no prêmio Machado de Assis antes de ganhar o São Paulo na categoria romance de estreia. Três porcos, publicado um ano depois, em 2020, venceu o Machado de Assis. A ideia de ter uma editora independente era essa, primeiro: atravessar as filas e os possíveis conluios dentro de grandes editoras que fazem ou não um livro ser publicado. Consegui. E achei, depois de um tempo, que haveria algum tipo de aceno, algo como “E aí, Marcelo!”, mas não houve. Até eu entender que precisava de uma agente, que agora tenho, demorou um tanto. Não sei o que pensaram essas grandes editoras, por que não me chamaram. Nem deu tempo para pensar porque sempre tem trabalho por aqui.

• Como escritor e editor, obviamente você tem acompanhado (e participado) as transformações do mercado editorial brasileiro dos últimos anos. O que mais te chama a atenção no panorama atual?
Gosto muito das independências — tanto das editoras como dos livros publicados. Uma vez, estive na Festa Literária de Cachoeira, na Bahia, e fiquei muito admirado com a quantidade de editoras que eu simplesmente desconhecia. E não porque eu seja um mero ignorante, mas porque aquelas editoras estavam ali para o seu público, para a sua gente, publicando a partir da Bahia para os seus leitores. Aqui em Santa Catarina isso também acontece, como acontece no norte do Paraná e em todos os lados. Talvez esses livros extrapolem barreiras geográficas e alcancem novos leitores. Mas a principal questão é: foram publicados e estão sendo lidos com proximidade entre autor, editor e leitor. Esse rompimento da verticalização (de Rio e São Paulo para o resto do país) cria um cenário que merece ser estudado, porque gera de fato uma nova cena. As editoras grandes continuam sendo grandes e tendo sua importância, mas essas editoras menores mostram que há lugar entre o mercado e o público para suas publicações, e elas convivem.

Deus não dirige o destino dos povos
Marcelo Labes
Caiaponte
280 págs.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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