Sem nome
o vassoureiro
o moço da pipoca
o feirante
o catador de latinhas
a voz do carro do pão
o rapaz morto ontem
o garçom
o motorista da van
o camelô
não têm nome próprio
os animais de rua também
não têm nome próprio
nem ocupam cargos públicos
a mulher nunca tem nome próprio
é a mulher do Fulano
a minha avó não teve nome próprio
os filhos a chamavam de mãe
eu a chamava de vó
e ela sempre atendia
a minha avó me ensinou
a atender prontamente
e a morrer sozinha
ela também me ensinou
a degolar franguinhos
e que as mulheres são sempre
propriedade de alguém
menos as que matam o marido
e fogem com a cabeça
numa sacola de mercado
essas ganham nome
nos jornais
e ameaçam o anonimato
das mulheres que em breve
vão aprender
a degolar franguinhos.
No poema sem nome, de Ninguém quis ver, estão indícios do universo da poeta carioca Bruna Mitrano. O poema começa com a enumeração de pessoas, não por seus nomes próprios mas pela função ou posição social que ocupam. Em seguida, a essas pessoas se agrupam os animais de rua, que também não têm nome, assim como as mulheres, que são sempre mulheres de algum “Fulano” com letra maiúscula. O poema segue numa espécie de genealogia dos sem nome: “a minha avó não teve nome próprio/ os filhos a chamavam de mãe/ eu a chamava de vó/ e ela sempre atendia”. A falta dos nomes é passada adiante, como os ensinamentos da matriarca: atender prontamente, morrer sozinha, degolar franguinhos, escolher entre ser propriedade do marido ou matá-lo, como a um frango que se deve degolar. No poema, matar o marido é o que dá à mulher um nome a ser visto — “essas ganham nome/ nos jornais”. E a perda do anonimato poderá evidenciar não só a mulher que degolou o pescoço do marido como aquelas que ainda aprenderão a fazê-lo — degolar frango, marido.
Poderíamos afirmar que o poema nos coloca diante de questões que atravessam todo o livro: violência de gênero, experiência social em contexto de pobreza, casos de família e genealogia, solidão, distribuição das funções sociais e dos privilégios etc. No entanto, por se tratar da leitura de um poema, isso nos dá a possibilidade de avançar não somente sobre as “questões”, mas principalmente sobre as “sensações”, já que um poema é forma condensada de sentido.
Um poema nos acontece
Ok. Então vamos começar por onde jornalistas começariam uma entrevista ao vivo na TV: o que você sentiu lendo o livro de Bruna Mitrano? É a pergunta que te faço — e me faço — para que prossigamos nesta leitura. Resposta: senti familiaridade com o jeito como Bruna narra os acontecimentos, senti que as coisas não pareciam tão pesadas até que de repente, um pouco de surpresa, se tornavam extremamente violentas, senti aversão por algumas passagens descritas nos poemas, quis degolar frangos do sexo masculino, senti vontade de me aproximar mais das minhas avós enquanto vivas.
Começo então pela simplicidade na linguagem poética de Bruna, linguagem atenta a não soltar nossa mão ao longo de toda a leitura. Digo, há uma preocupação com a comunicação, os poemas dão notícias de uma vida, ensinam sobre uma vida, e parecem fazer parentesco ao modo de falar, não dos jornais — tão absortos na repetição —, mas dos causos que nos contam nossas mães e avôs — histórias que aconteceram a alguém. Poderíamos dizer dos poemas, então, que são prosaicos, por manterem entre as palavras um nexo narrativo a respeito da vida cotidiana. Mas “prosaico” não acompanha o que Bruna executa nos poemas.
A escolha de palavras, tão comuns, substantivos comuns, quase nunca próprios, quase nunca nomes de algo ou alguém que se fecharia ao nosso conhecimento, nos eleva à apreensão do poema, e esse modo quase pedagógico de criar em nós, leitores, as imagens, estabelece um vínculo pela ternura — daquele tipo infantil, de quando uma professora ou amiga nos levam pelas mãos para mostrar alguma coisa que não poderíamos deixar de ver, e que não estávamos esperando. Talvez por isso seja necessário fazer coro aos tantos leitores de Bruna Mitrano que, ao comentarem a respeito do livro, em posts seguidamente recompartilhados pela própria poeta em sua página do Instagram (@brunamitrano), falam de um não sei quê que sentiram e que precisaram parar para digerir.
Em um desses reposts, de um post original de Mari Maiante, encontramos a seguinte passagem: “a leitura de Ninguém quis ver de @brunamitrano precisou de respiro. E não qualquer respiro; falo daquele longo, que puxa até pensamento junto”. Sem meias palavras ou meia ternura, tampouco meia violência, o livro tem momentos abruptos, quando a nossa digestão, que vinha sendo galgada palavra por palavra, imagem por imagem, de repente se complica, dificultada não pelo hermetismo, mas pelo bruto mesmo da realidade.
A economia das palavras, ou dos nomes, parece importar na construção do livro de diversas maneiras. Se apresenta como tema, por exemplo, condensado em título no poema sem nome; ou no poema o bebê, sobre um bebê que de tanto pegar sol morre antes de ser nomeado (“minha avó nunca nem disse o nome”); ou no poema função, que fala do maquinista de trem, anônimo, cuja função é nunca perder o controle do transporte, mesmo que um tiroteio atinja sua cabine enquanto ele trabalha. Se o absurdo dessas situações em contraste com a forma direta como aparecem nos poemas amplifica a violência inerente a tais circunstâncias, a generalização da falta dos nomes próprios acaba por chamar a atenção para quando alguém finalmente emerge nomeado.
Poucos são os objetos, pessoas ou personagens especificados por nome próprio no livro. Pude identificar os seguintes: tia Fátima, que gostava de ser fotografada; Ícaro, da mitologia grega, e a caneta bic; a própria Bruna e sua boneca “lu patinadora”; Teresa e o orixá Omolu; a estação Ramal Santa Cruz; Rosa Araújo, que recebe um poema em dedicatória; Kaylla Leandra, que está também na dedicatória de um poema; Elias Antônio, marido da avó; e, finalmente, Adelina, a avó, para quem o livro está dedicado no início e que ressurge no último poema, dessa vez com seu nome completo, Adelina Araujo Antonio.
Adelina Araujo Antonio
O que fica, o último poema de Ninguém quis ver, começa assim: “guardo os documentos da minha avó// na foto preto e branco/ do RG de mil novecentos e oitenta e três/ ela é jovem e se parece com minha mãe// embora fosse analfabeta/ a assinatura é legível:// Adelina Araujo Antonio// no RG de dois mil e onze/ a foto é digital/ ela se parece com ela mesma// no lugar da assinatura/ uma justificativa:// ‘impossibilidade de assinar’”. Uma série de costuras e significações parecem tecer todo o livro até culminar neste poema, neste nome próprio, nesta assinatura e nas imagens da avó, que, como nos conta o poema, ao fim da vida fica cega.
Depois de convivermos com a vó ao longo do livro, nós, leitores, chegamos a este final, que coincide com a narração de sua morte. Adelina Araujo Antonio, que atravessa todos os poemas sem ser nomeada, e a vida sem saber escrever, e a velhice acometida pela perda da visão, agora, tem o nome marcado na página. Da multidão sem nome que habita o livro, emerge alguém, produzido à revelia do pronome que participa do título da obra, e que parecia apontar para uma espécie de constatação a respeito da vida social e da indiferença direcionada a certas vidas que ninguém quis ver. Afinal, “querer ver” se positiva e ganha novo enfoque conforme surge alguém, pessoalizada em Adelina. Quem tem nome existe e, ao ser visto, pode olhar de volta. Adelina ficou cega e, no entanto, finalmente somos nós quem a vemos.