A caminho da ponte
Não sei a que horas acordei. Estava encolhida no canto da cama. Minha cabeça doía; meu estômago revirava. Fechei os olhos e tentei voltar a dormir. Os olhos abriram minutos depois. Fiquei ali, deitada, imóvel. As manchas estranhas no teto não me deixavam relaxar. Faça um esforço, Marianne, levante-se. Pousei os pés no chão frio. Havia também uma mancha vermelha na minha camisola. Fiquei confusa por um momento, até lembrar. Estava menstruada e esquecera de trocar o absorvente.
Caminhei lenta até o banheiro. Ao fim do corredor, o relógio. Quase meio-dia e tudo era ressaca. Na porta da geladeira um bilhete do João me informava de um plantão do qual não ouvira falar. Ou talvez fosse uma desculpa para fazer outra coisa — outra. Bebi um copo de leite, não mais. O estômago revirava. Enfiei uma maçã numa bolsa perdida no balcão da cozinha. Prendi um bilhete na geladeira para o caso de o João chegar, bati a porta do apartamento, entrei no carro e dirigi para o Aterro do Flamengo.
O sol era forte e era domingo. Eu não queria lembrar mais do atropelado. No parque as crianças corriam feito zonzas pelo gramado e os adultos corriam disciplinados pela pista. O sol batia em todo mundo e bati eu também no meu vestido para espantar os insetos zumbindo ao meu redor. Eu deveria estar feliz. João só retornaria por volta das oito da noite e trocaríamos palavras e beijos então. Talvez estivesse com a outra enquanto isso, porque era tão verossímil.
Mas procurei não pensar. Fui para o lado do Centro; o Pão de Açúcar se afastava. Sentia minha pele quente e o estômago se acalmava. Em breve a maçã não seria má ideia. Passei o MAM e o aeroporto. Às vezes me parecia faltar uma ponte que ligasse João a mim. Não podia ser como em um filme de amor — o amor nos filmes de amor é alimentado pelo amor e talvez pelo ciúme, e por isso nossa história não poderia nunca ser um bom filme. Levara tempo e esforço erguer a ponte. Às vezes as pessoas morrem em construções de pontes. Porque pessoas morreram por mim e pelo João mas de fato morreram por pontes também. Assim como morriam atropeladas, às vezes nas mesmas pontes que custam a vida a outras pessoas para serem construídas.
Ainda assim você não deveria, Marianne, dirigir agora com tanta confiança, você não deveria correr como corre, nem cortar os carros nem deixar o pneu cantar. Mas o vento na minha cara é que me obrigava à liberdade que eu jamais voltaria a ter, e talvez precisamente por isso eu me abandonasse tanto ao ultrapassar os carros, porque isso você pode, Marianne, então faça.
— Se nós fizéssemos.
João me disse um dia:
— Vamos ser livres.
Eu estava no volante, o carro na estrada de terra e a estrada deserta. Fora pouco depois do início de tudo e eu voava livremente.
— Não seja idiota.
— Vamos, Marianne, vamos ser livres. Quer saber como?
Não respondi. Ele disparou:
— Assumindo.
Engoli seco, pisei no freio. Assumindo?
— Que idiotice é essa?
— Lembra os filmes? Bonnie & Clyde. Mallory & Mickey. Assassinos por natureza. Trouble in paradise. A vida seria melhor, Marianne. Nós assumimos que matamos de uma vez, largamos tudo e saímos pela estrada.
Dessa vez freei o carro por completo. O acostamento servia afinal para as emergências. Agarrei seus ombros. João sorria convencido do plano. João era louco de pedra.
— Você tem idéia do que isso significa, João?
Ele começava a lutar para sustentar o sorriso.
— Como isso poderia durar? Imagina a gente tentando ser assassinos por natureza.
— Mas não somos?
Tomei tempo para responder.
— Não saímos de um roteiro de Hollywood, João. Nosso trajeto nunca vai ser esse.
Pisei mais forte no acelerador.
— Podíamos repetir aquela noite para sempre, Marianne. Ser livres, entende?
Afundei o pé e a pista à nossa frente quase me dava a impressão de que o plano do João poderia funcionar.
— Imagina. A gente pega a estrada, não rouba nada, só mata. As pessoas se incomodam quando lhes tiram o dinheiro, não quando lhes tiram desconhecidos. Esse foi o erro dos que vieram antes de nós. Mas já temos dinheiro.
Fui acelerando mais e mais. O vento na cara me revivia e em breve eu precisaria pegar a saída à esquerda na estrada de terra. A maçã não seria má idéia. A brisa da baía trazia algo de mar e João continuava:
— Também não mataríamos à luz do dia. É tão sem graça e tão suicida.
— Concordo. Mataríamos à noite, longe da vista dos outros.
A bifurcação chegava e eu deveria pegar a esquerda para a fazenda e a direita para Niterói.
— Você concorda então, Marianne?
Hesitei. Obviamente eu não era lunática como ele.
— João, nós não viemos de um filme. A realidade está aí, você não vê? Já foi demais termos livrado a pele naquele dia.
— Por isso — ele me interrompeu — o que acontece nos filmes poderia acontecer na realidade. Já aconteceu, e a prova está na nossa frente.
— Mas nós não somos como eles. Nós não viemos de uma história de ação. Nós não mataríamos como eles e estaria tudo bem por semanas, meses, anos talvez. Não duraríamos uma semana nessa vida, João. E depois não iríamos para uma cadeia decente. — Peguei então a bifurcação à esquerda. — Íamos passar fome, íamos ser estuprados, íamos dormir na merda. Para sempre, João. Você quer isso?
Peguei então a bifurcação à esquerda. Para Niterói era à direita. Eu estava agora na Avenida Brasil. Estava quente e empoeirado e eu estava na rua errada. Segui duzentos, quinhentos, mil metros. Não conhecia a Avenida Brasil e duvidava de que não ficaria para sempre lá. Um desvio. Onde me levaria? Era muito quente e os carros muito rápidos me davam o desejo de dirigir à noite. Evitei o desvio, mas saí da pista central. Eu poderia entrar em uma favela e morrer. Eu poderia ser sequestrada, porque é tão fácil, uma mulher com roupa de grife e sozinha em um carro relativamente novo, sozinha na favela no sábado e quem terá piedade. Eles poderiam me sequestrar e eles me olhavam. Que olhassem. Eu precisava de um retorno com uma saída para a ponte. Que olhassem. E por olharem todos peguei a ruela velha, a via pequena e destruída, os cachorros e as crianças brincando nas poças de lama e nada garantia que não poderiam voar para o meu carro, quebrar o meu vidro e me atacar ali mesmo, a matilha inteira e as unhas e os dentes pequenos das crianças e dos cães, quem poderia detê-los? João estava longe agora e os barracos cinzentos me davam o sentimento do suicídio, porque era exatamente isso, como foi também quando a pista me levou a um elevado que, cruzando para o outro lado da Avenida Brasil, me fez dar a volta em outra rua menos macilenta, é verdade, mas nem por isso mais tranquilizadora, porque é nesses lapsos que as pessoas se perdem, Marianne, é pegando as bifurcações erradas e as ruelas sujas que você se afunda e, quando menos espera, eles vêm para cima de você cheios de garras e olhos, a matilha inteira e o que você poderá fazer?, mas agora eu podia, agora porque a rua terrível mas não tão ruim me conduzia novamente à Avenida Brasil, a passagem ilesa por entre o mar de vielas apodrecidas, e agora recomposta como quando pegara a bifurcação à esquerda naquele dia, decidida como quando disse a João que não havia chance de sairmos como dois bandoleiros matando na calada da noite, como quando fiz a curva acentuada à esquerda com a decisão dos que não se distraem ao escolher os caminhos, agora eu novamente afundava o pé no acelerador feliz como se pudesse atropelar alguém que corresse pela avenida, e enxergava a placa indicando-me finalmente o retorno para casa porque Niterói não era mais casa como o Catete, sim, eu voltaria ao Catete, e a rua tinha muitas bifurcações à volta mas eu já não via nenhuma. Não via nada até chegar novamente ao Catete e discar o número do João sabendo que não atenderia. Nunca atendia no hospital, e me parecia certo. Parei o carro e mordi a maçã. O telefone tocou uma, duas vezes, e como quem não acredita ouvi sua voz do outro lado da linha: Marianne, acordou?