Começo pelo fim. No último poema de Holograma, a jovem poeta Mariana Godoy demonstra clara consciência do que vem a ser o ofício de escrever versos. Lemos:
busco a lembrança de como e quando voltamos pra casa
na tentativa
de através deste poema
reconstruir não a cena mas a possibilidade da mesma
uma variante da linha do tempo principal
[…]
o poema acontece
ele exerce o papel de poema em uma infinidade de possibilidades
O livro se inscreve num terreno explorado quase à exaustão na literatura contemporânea, o da memória. Digo quase pois sempre há a possibilidade de entrar na questão por um ângulo diferente. É o que Mariana Godoy faz. A memória, no caso deste livro, se dá à maneira de holograma. Porém, não um holograma que realiza/artificializa com nitidez a presença de algo ou alguém ausente, recurso que a tecnologia há tempos permite fazer, mas uma espécie de holograma que materializa imagens opacas e translúcidas. Ao mesmo tempo que permite ver, gera uma nebulosidade que borra os fatos e nos coloca em outra dimensão da realidade.
O trecho citado acima revela a chave metapoética, uma vez que se volta para a própria voz da poeta que tenta dar corpo às lembranças. Se há um abismo entre os fatos ocorridos e o que conseguimos trazer concretamente para o único tempo que existe, que é o agora, que esse abismo seja habitado por uma ponte inventiva. Memória, sabemos, tem a ver com invenção.
Porém, tratar-se de invenção não nos afasta do desejo de querermos saber um pouco mais de nós mesmos, daquilo que fomos, ou do que cercou nossa história. Por isso, o terreno da memória ainda se oferece como exercício tão instigante, porque nele inventamos translucidez para a opacidade. Nele tentamos criar sentidos para o que somos e nessa criação entrelaçamos radicalmente os indícios de fatos ocorridos com a invenção de desejos e projeções. Enfim, trabalhar memórias é uma forma de seguir em frente, com tudo de verdadeiro e ficcional que isso implica.
O trabalho da memória na literatura contemporânea se tornou tônica tão repetida que a concepção de ficção chega a se confundir com a de memória, uma vez que ambas ligam realidades (inventadas ou não) e nos afastam de concepções antigas que opunham imaginação e realidade. A insistência na memória talvez tenha nos ajudado a nos livrar de uma vez do engodo paradigmático que opunha ficção e realidade.
Presença do pai
O holograma proposto por Mariana traz presenças opacas em meio a outras um pouco mais claras. A do pai, podemos admitir, é a presença que atravessa todo o livro. Aquela que está o tempo todo tensionando o exercício da poeta, qual seja, criar “possibilidades” de cenas.
A mãe, mais culta, explicativa e transparente, não derruba na persona poética as pontes do “tempo principal”, quem faz isso é o pai, marcado por episódios de violência. A violência inexplicada é que derruba as pontes dos castelos da infância. Daí a visceralidade desse holograma/pai. Ocupar esse abismo incompreensivo entre o que somos e os fatos que nos antecederam parece mover o livro de Mariana. Que, como todo bom livro de poesia, é um artifício consciente das impossibilidades. Saber das impossibilidades parece livrar nossa imaginação para realizações poéticas inesperadas e bonitas, embora não sem dor.
Na impossibilidade de saber do “tempo principal”, Mariana constrói variantes temporais por meio dos hologramas. Variantes que nos colocam em presença de sutilezas da infância, bem como em presença de descobertas do amor que só a intimidade de uma vida a dois permite, em presença também de hesitações quanto aos sentimentos de filha, com relação ao pai e à mãe, e em presença de uma série de outras temporalidades que, como efeito estético, causa uma interessante inversão poética, a de nos vermos também um pouco como hologramas. Como se nós estivéssemos teletransportados para as cenas inventadas da poeta.
Não podemos falar que Holograma se oferece como um livro de formação — não apenas porque esse tipo de interpretação seja mais comum à prosa, mas porque ele, o livro, extrai da ambiguidade e da dúvida sua principal potência, o que não sinaliza para uma personagem em amadurecimento, antes, sinaliza uma personagem se entregando ao fluxo das incertezas —, no entanto, podemos ver passagens que remetem a diferentes momentos e idades na trajetória da persona poética. E nesses “ritos de passagem”, como ela intitula um dos poemas, percebemos intensas contradições da vida.
1
tudo começou com meu irmão dizendo
que eu nunca ia ser atriz
que eu nunca ia ser atriz
porque não conseguia prender a risada dentro do corpo
3
o meu pai nunca tinha me batido antes
[…]
mas naquela noite
quando a risada saiu de dentro do corpo
ele gritou tanto que fez um furo
me pegou tão forte
que fui parar na cama em linha reta
5
quando viajei de avião pela primeira vez
foi como ir de um cômodo a outro
pelas mãos do meu pai
Tom do holograma
A simplificação da linguagem neste poema dá o tom do holograma que presentifica criativamente a memória. Simples como a expressão de uma criança, porém também direta como a expressão de uma criança, o coloquial aqui não é concessão com o falar simples. Antes, é fruto de depuração. O primeiro verso remete a contos infantis no estilo era uma vez, mas insinua um começo. Este se esfarela na lembrança artificializada no livro. Ou seja, não há começo para a memória. Começos são forjas de sentido, atendem à lógica. E em Holograma estamos em outro registro, estamos perdidos em fluxos, lapsos de lembranças costuradas por poesia para que os fios, laços, textos vividos se mantenham vivos.
Dito de maneira mais clara, “tudo começou” é um falseamento necessário para que o Holograma se sustente. Há, sem dúvida, algo de lírico nesse começar que se dá na fala do irmão que a reprime. Lirismo esse que, ao se chocar com a brutalidade do pai que a pune estrofes abaixo, justamente por rir, comprova a intuição do irmão. No caso do poema, não ser atriz significaria não ser protagonista dentro da própria casa — traço patriarcal que transborda a esfera pública e privada, uma vez que a fala do irmão também pode remeter a um sonho da persona poética. O irmão a subestima como sonhadora e realizadora (ser atriz) e o pai a pune dentro de casa (controle dos rompantes de alegria).
No entanto, todo esse impositivo masculino que deixa marcas evidentes na lembrança da menina, aparece artificializado em palavras bonitas, não conseguir “prender a risada dentro do corpo”. Como se não se tratasse necessariamente de traumas, mas sim de lembranças ruins, algo absolutamente comum a qualquer leitor que já teve que desmistificar seu passado feliz de criança.
E, para aumentar a complexidade das contradições sentimentais da lembrança, a estrofe que fecha o poema propõe uma bem trabalhada ambiguidade. Ter ido “parar na cama em linha reta”, na parte 3 do poema, remete à brutalidade com que o pai a reprimiu por rir, além de sugerir, implicitamente, o deslocamento de cômodo dentro da casa. Na referida estrofe final (parte 5), a mudança de cômodo pelas mãos do pai pode tanto remeter à repressão que o poema já havia mencionado quanto a um gesto de carinho, um pai levando um filho para dormir. Essa conotação mais lírica ganha força ao supormos que, para uma criança, a memória da primeira viagem de avião seja uma coisa mais positivamente marcada.
Muitas são as passagens do livro que nos revelam uma escritora inventiva que não pesa no cerebralismo para artificializar hologramas de memórias. Isso nos permite ler uma obra que mistura o singelo com o complexo. Ponto alto dessa complexidade que não se revela inorgânica ou hermética está na última estrofe do poema homônimo do livro:
mas o primeiro a interpretar
meu pai foi o cavalo
que passou pela rua de terra dos meus três anos
qualquer cavalo
e uma criança atrás dele
gritando volta
O aparentemente insólito desse “cavalo”, à Clarice Lispector, tem a força para onde converge toda a poética do livro. Talvez ele, o cavalo, seja o holograma principal dessas memórias. Embora muitos sejam os hologramas, ou seja, as imagens trazidas à presença do leitor, Mariana optou por intitular o livro no singular e montá-lo sem subdivisões ou seções (como é comum aos livros de poesia contemporânea). Há uma presença nuclear na memória inventada pela poeta. A presença é o pai. O artifício, o cavalo.
O novo livro de Mariana Godoy mostra que, mesmo consistindo numa das questões mais persistentes da literatura feita no Brasil nas últimas décadas, a memória ainda pode ser acessada por variantes novas.