O judeu, o literário, o sagrado

No avião Tel Aviv—Copenhagen. Retomo a questão discutida durante toda a semana em que estivemos em Israel — o que é um judeu?
O rabino Harold Kushner
01/06/2012

29.07.1987
No avião Tel Aviv—Copenhagen. Retomo a questão discutida durante toda a semana em que estivemos em Israel — o que é um judeu? —, mas a partir de outro ponto de vista, que encontro em Harold Kushner: “Quando tudo o que você quis não é suficiente”.

Assim como “um chimpanzé só não é um chimpanzé”, precisa de outros para potencializar seus atributos, um judeu só não existe. Existe uma relação entre vários, o que faz uma estrutura social.

Contudo, cada “chimpanzé” tem características particulares do “geral”, o que faz com que uma reunião de “vacas” não seja igual a uma reunião de chimpanzés; nem que “vacas”, “cães” e “periquitos” equivalham aos chimpanzés reunidos.

Logo, existe algo no chimpanzé — isolado — que ajuda a determiná-lo socialmente. Não é só o social, grupal que determina o sujeito.

E, além do mais, há chimpanzés de espécies diferentes.

O judeu é (individualmente) depositário/repositório de um discurso que o criou e deu sentido ao seu modo de viver e de agir. Há uma ideologia (religiosa e social) que o conformou, in-formou.

29.07.1987
(No avião Copenhagen-Rio, depois de ler alguns textos como o de Gérard Haddad, El hijo ilegítimo — interpretação judaico-lacaniana do “Talmud”.)

A literatura se estrutura como a estrutura do sagrado. Mais que do mítico. Do sagrado mesmo. Deveria escrever um ensaio sobre isto: é fascinante: o artístico e o sagrado.

Ao sagrado se impõe certa “imobilidade” de referência. A essa “bíblia” estática no tempo e no espaço recorrem os fiéis. Há um “corpus” de textos fundamentos/princípios que constituem a história cristalizada. O paradigma fundador, instaurador. Uma “Eclésia”.

Na literatura, “clássicos” têm essa função. Compõem um todo, um corpo que pode ser dividido em “velho” (a fundação) e “novo” — testamentos. Entre eles, uma ruptura/continuidade. Explicam-se, negam-se, perfazem-se.

Mais que isto: há um profeta/texto fundador. Um legislador originário (originante/original). Em nossa cultura judaico-cristã-Moisés: o Pentateuco. Contendo o decálogo e a fundação de um povo. Fundando no decálogo a “letra fundamental”. Em nossas culturas: El Cid, Nibelungos, as sagas nórdicas, a indus, Chanson de Roland, ou, em outros estágios, A divina comédia, Os Lusíadas, Dom Quixote, etc.

Aprende-se, então, nos manuais escolares: uma cultura fundada por um texto, uma língua dando personalidade a um povo-nação. Como o Corão reunificando os árabes, como a Bíblia evitando/resistindo às diásporas.

A letra fundadora. E a metáfora da língua-mãe e do pai-fundador (profeta escritor). A epopéia é, assim, a cosmogonia original de um povo.

Homero, magno exemplo: Ilíada/Odisséia.

Os textos onde deuses e homens se compõem num jogo de espelhos.

O velho testamento, a crença nos valores cêntricos, unificadores, reguladores: a gramática, a sintaxe original. O novo testamento, o lugar do anti-herói, aquele que crucificaram (e reverenciaram imediatamente). Kafka, o exemplo mais sublime.

Universidades são igrejas, sinagogas onde se cultua a literatura, a tradição, o Pentateuco literário e onde o “novo testamento” busca status/estatuto. Professores especializados neste ou naquele autor: discípulos ante a palavra luminoso-total proferida por um grande santo-apóstolo.

Por fora correm os apócrifos e a literatura da massa.

Os donos do cenáculo, do templo, olham-nos com desdém, superioridade. Pois, como eleitos, só têm contato como sagrado: Joyce/Mallarmé (novos messias), etc.

E há os mártires. Comovedoras biografias. Vida e letra. Sangue e mito. Adoração. Vidas sacrificadas. O périplo dos infernos. Peregrinações e monastérios.

A edição crítica: é preciso conhecer na íntegra a palavra do senhor.

E reúnem-se em rituais menos profanos que a universidade: as academias (e similares). Usam roupas rituais. Têm linguagem hierática. Reverenciam o passado. Reverenciando-o garantem (como mortais) a eternidade. Quando morrem, seus nomes estarão inscritos na “Bíblia”: a história da literatura (ou das artes).

Sim, a arte é uma instância do sagrado. Até quando se rebela (contra o sagrado) acaba se consagrando — autores/obras consagradas: o dadaísmo e todas as artes modernas dessacralizadoras acabaram em museus, aonde vamos silenciosamente reverenciando cada santo, lembrando-lhes os milagres.

Museu: catedrais. Góticas ou modernas.

O Gênio, o talento: falamos no paradigma da santidade: Bíblia: “muitos os chamados e poucos os escolhidos”.

Não é à toa que a arte durante tantos séculos andou ligada ao sagrado explicitamente, na construção de templos: pintura, arquitetura, escultura texto e música, tudo compondo um todo mítico. Tão sagrado era o culto que os autores não assinavam seus nomes.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

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