Outro Macedo

Compilação de crônicas dá nova vida ao autor de "A moreninha"
Joaquim Manuel de Macedo por Robson Vilalba
01/06/2011

Joaquim Manuel de Macedo é o autor de A moreninha. Para todos os efeitos, essa é a nota biográfica que cabe ao escritor quando se trata de mencioná-lo em alguma antologia de estudos sobre o romantismo, ou, ainda, a propósito da literatura brasileira do século 19. Em tempo: a referência não está equivocada. Grosso modo, os teóricos literários e estudiosos são unânimes ao declarar a importância da obra para o romantismo brasileiro, sobretudo ao forjar o que seria a primeira etapa da prosa oitocentista no Brasil. Ainda assim, o rodapé relacionado a Macedo, em que pese o consenso dos críticos, acaba por reduzir os demais textos produzidos pelo autor e, por extensão, diminuir sua relevância na ficção brasileira daquele período. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que se homenageia o autor ao lembrar os leitores sobre sua obra mais conhecida, este artifício torna-se, também, uma espécie de maldição, como se Joaquim Manuel de Macedo fosse escritor de uma obra só. Não é. Prova disso são as recentes edições de suas facetas menos lembradas nos últimos anos, a saber: a de cronista e a de romancista satírico. Os textos, respectivamente, são a antologia O Rio de Joaquim Manuel de Macedo, organizado por Michelle Strzoda (Casa da Palavra); e A carteira do meu tio, do próprio autor (Hedra).

No caso da antologia organizada por Michelle Strzoda, chama a atenção o excelente trabalho de pesquisa bibliográfica que traz, para além do contexto da época, um preciso e denso panorama das letras no século 19. Desse modo, talvez pela primeira vez de forma conclusiva, os leitores interessados têm à disposição uma visão sofisticada do que seria o jornalismo cultural no século 19 e, mais interessante, de que forma a imprensa cultural ajudou a forjar não apenas os leitores, mas, principalmente, os escritores do período. De maneira similar, a pesquisadora discorre sobre o nascente mercado editorial do período, estabelecendo um elo fundamental entre a ficção e o folhetim, donde se decorre que, sem a imprensa cultural, o romance como idéia não teria vingado naquele momento com o mesmo impacto. Todo esse preâmbulo, o leitor aprende, é elementar para o que virá a seguir, isto é, os textos de Macedo, começando pela que seria a primeira crônica do autor, publicada no Ostensor Brasileiro, no ano de 1846. Nesse período, o cronista que surge é uma espécie de lírico da província, posto que o texto do escritor se notabiliza por descrever as beleza naturais ao mesmo tempo em que tece loas à cidade sobre a qual escreve, São João de Itaboraí (não por acaso, o título do texto é o nome do povoado). E a cada capítulo, o leitor descobre um pouco mais desse cronista em formação, e Strzoda, sempre que necessário, aponta algum detalhe importante sobre Macedo e sua obra: seja em relação aos periódicos em que os textos foram publicados; seja em relação ao estilo do autor, em adaptação.

Adiante, lê-se a passagem de Macedo por Petrópolis, quando o autor utiliza referências filosóficas como Demócrito e Heráclito; ou, ainda, nota-se a exacerbação da subjetividade e da primeira pessoa que dá voz aos textos. Como salienta a organizadora, nesse caso, os textos do autor nesse segmento pertencem a outro gênero — são em forma de carta —; portanto, é possível inferir que as marcas de singularidade e mesmo de detalhamento estilístico tenham sido efetivamente pensadas por Macedo, uma vez que buscava interlocução com o destinatário. E, com efeito, nesse Macedo epistolar, nota-se um quê de cronista à maneira dos historiadores que registram as impressões do espaço, assim como notam certos aspectos do caráter daqueles que preenchem os lugares, como sugere o trecho:

A Ponta da Areia é bem a ponta do nosso progresso material, e a que aponta o sr. Irineu como um dos maiores homens da atualidade. Por mais que bradem os partidos, o Brasil está hoje representado por quatro homens: o sr. Magalhães é ostensor da poesia; o sr. Caxias a sumidade da glória das nossas armas; o sr. José Clemente o homem da pedra e cal, o homem das artes plásticas; e o sr. Irineu o representante do progresso material.

Se as 719 páginas de O Rio de Joaquim Manuel de Macedo já chamam a atenção, o leitor também ficará entusiasmado com a profílica produção textual do autor de A moreninha. A cada capítulo, observa-se não apenas a capacidade de escrita do romancista, como a versatilidade para a abordagem de temas e assuntos em suas crônicas. É o caso do quinto capítulo, onde estão as crônicas sobre os faits divers, os assuntos mais importantes daquela semana. Aqui, sem prejuízo de anacronismo, pode-se aproximar esse texto das seções da norte-americana The New Yorker (“The Talk of The Town”) e da brasileira Piauí (“Esquina”). Outro dado que aproxima os textos — com os de Macedo, bem entendido — é o fato de não serem assinados. Como se sabe que os textos não assinados por Macedo são, de fato, dele? A pesquisa de Strzoda, a organizadora, cumpriu bem o papel de compilar essas informações com base no estilo e nos traços deixados pelo autor — em tempo, no início do livro, tem-se a chance de acompanhar toda a trajetória jornalístico-literária de Joaquim Manoel de Macedo. Um dado curioso nesse segmento, a propósito, é que já no século 19 havia a preocupação com o que hoje se chama de “ansiedade de informação”. Entre os muitos assuntos que o autor se propõe a comentar em suas crônicas semanais, está a relação entre o tempo e a quantidade de jornais disponíveis para ler, como escreve no trecho selecionado:

Ainda ontem (…) veio-nos a idéia de calcular o tempo que gastaria um curioso que se propusesse a ler todos os jornais diários e semanais (….) Ainda nos restavam periódicos sobre a mesa, porém não pudemos mais. Somadas as horas e minutos que déramos à leitura de dezenove jornais, e achamos que em resultado tínhamos lido dezessete horas e 55 minutos.

À conclusão dessa conta, Macedo acrescenta que, exceto por uma ou outra nota, havia ficado na mesma. Muitos anos depois, Proust escreveria, em constatação semelhante, que os jornais publicam o que é desinteressante e deixam de lado o que, de fato, importa, como os pensamentos de Pascal. E alguém poderá dizer que o cronista brasileiro não foi perspicaz?

Memória cultural
A peça de resistência dessa coletânea, não há dúvida, é o extrato dos textos que foram publicados pelo Jornal do Commercio, que, conforme ensina a organizadora, serviram de base para uma nova linhagem de estudos sobre a memória cultural e geográfica da cidade do Rio de Janeiro. Tomando outras leituras como base, nota-se semelhança entre esse Macedo, observador arguto da cidade, e o flanêur baudelairiano ou a alma encantadora das ruas de João do Rio, na mesma cidade, muitos anos à frente. O que os une? A curiosidade e, essencialmente, a capacidade de fazer de uma prosaica passagem ou visita a um evento de experiência estética sofisticada. Em outras palavras, o que importa aqui não é só o espaço visitado — que pode ser o Palácio Imperial, o Convento de Santa Tereza; a Igreja de S. Pedro; ou o Imperial Colégio de Pedro II —, mas, sobretudo, a forma de transformar essas experiências em verdadeiros relatos estéticos sobre o olhar. É importante frisar que, a essa época, não se contava com o aparato audiovisual que grassa na contemporânea hipermodernidade. O único recurso de que o autor dispunha, o texto, era capaz de incendiar a imaginação do leitor, forjando uma idéia da cidade do Rio de Janeiro. Aqui, novamente, a associação aos cronistas viajantes que expuseram sua “visão do paraíso” sobre o Brasil não está fora de lugar. Exemplo disso se dá quando o autor escreve acerca do Colégio de Pedro II:

Assim como há grandes e caudalosos rios em que sua nascente são apenas tênues arroios, assim também se vêem belas e consideráveis instituições cujo berço modesto e pobre mal deixara adivinhar o seu futuro brilhantismo. O Imperial Colégio Pedro II está neste caso.

O trecho acima é singular para que se possa comentar A Carteira de Meu Tio, obra que merece atenção porque dá margem a um Macedo pouco conhecido atualmente: o autor de sátira política. De fato, hoje em dia, quem assiste a programas de humor ou mesmo freqüenta as casas de comédia stand-up imagina, não raro, que os humoristas estão aí para revolucionar os costumes e, de forma original (“nunca antes”), botar o dedo na ferida da política brasileira, esta marcada pela corrupção. De modo mais sofisticado e bem à sua maneira, Joaquim Manuel de Macedo faz em A carteira de meu tio uma sátira política que ainda tem ressonância com o Brasil contemporâneo. Tomando como narrador o personagem do sobrinho, lemos a mazela dos vícios da política nacional em tom de escárnio. Rindo, moralizam-se os costumes, diz provérbio latino (Ridendo castigat mores), e Macedo emprega a pena de forma brutal para desmontar o aparato do compadrio e da pequena política. De forma curiosa, o romance do autor ataca a classe política, mas preserva de forma absoluta a monarquia e a imagem de seu grande representante, D. Pedro II.

Não é difícil imaginar por que Joaquim Manuel de Macedo agiu assim. Como romancista e homem de letras, o autor foi forjado no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, instituição que arregimentou a idéia de romantismo no Brasil. No prefácio de A carteira de meu tio, Leandro Thomaz de Almeida ressalta o papel de Macedo no IHGB: “No IHGB, Macedo ocupou os cargos de orador, 1º secretário e 3º vice-presidente”. Em certa medida, tanto na coletânea de crônicas quanto no romance, os temas do escritor são mais ou menos os mesmos, o Brasil e suas instituições — no âmbito da política e da cultura. O que destaca a produção literária de Macedo, todavia, é o talento e a imaginação para pensar e escrever sobre um país que ainda estava à procura de seus autores.

O Rio de Joaquim Manuel de Macedo
Joaquim Manuel de Macedo
Casa da Palavra
720 págs.
A carteira de meu tio
Joaquim Manuel de Macedo
Hedra
184 págs.
Joaquim Manuel de Macedo
(1820-1882) Nasceu em Itaboraí (RJ), em 1820. Formou-se em Medicina, tendo sido professor do Colégio Pedro II e político com mandato de deputado pelo Partido Liberal. Como escritor, é autor de A moreninha, romance inaugural do romantismo brasileiro. Publicou, ainda, os livros A luneta mágica; A torre do concurso; e Memórias da Rua do Ouvidor (que consta no volume de O Rio de Joaquim Manuel de Macedo). Morreu no Rio de Janeiro (RJ), em 1882.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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