Prezado Jefferson,

Você conseguiu condensar em vinte linhas uns trezentos assuntos diferentes, quase todos problemáticos, e isso me atordoou
O romancista norte-americano Jonathan Franzen
01/06/2012

Vou logo pedindo desculpa pela demora em responder à tua mensagem. Não foi por raiva ou desprezo, juro. Também não foi por preguiça nem por falta de tempo. Foi simplesmente por não saber muito bem o que dizer.

Você conseguiu condensar em vinte linhas uns trezentos assuntos diferentes, quase todos problemáticos, e isso me atordoou. Meu temperamento felino falou mais alto e eu saltei de banda, assustado.

Mais de três meses depois estou de volta, pronto pra luta.

Imprimi tua mensagem e grifei com canetas de cores diferentes as muitas questões explícitas e implícitas. Depois distribui todas em três cestos. Sem essa triagem seria impossível seguir adiante, organizar minhas idéias.

No primeiro cesto eu coloquei tuas observações (azedas) sobre a cena literária brasileira contemporânea. No segundo, os comentários não menos azedos sobre a “baixa auto-estima do escritor tupiniquim” (ainda estou em dúvida se a melhor expressão é essa mesmo). No terceiro, as duas críticas ao livro Paraíso líquido.

Você está muito irritado com a cena literária atual, mas desconfio que essa irritação seja fruto de uma ilusão. Veja bem, você teve seu original recusado pelas editoras e isso é frustrante. Você sente que se morasse em São Paulo ou no Rio seria mais fácil, afinal, as boas oportunidades estão todas aqui.

Hoje você odeia o que ontem tanto amava, a vida literária, porque sente que a vida literária não quer você. Teu livro foi rejeitado. Qualquer vínculo institucional e emocional futuro com as livrarias, os jornais e os leitores está proibido. Prêmio Jabuti ou Portugal Telecom? Sem chance.

Conclusão: a festa não é pra todos e você faz parte da galera que foi barrada na porta.

Percebe por que eu falei que tua irritação é fruto de uma ilusão?

Não existe festa. Não existe banquete. Não se você pensar em algo organizado nos mínimos detalhes, com data e local predeterminados. A cena literária não é um evento fechado, vistoso, pra poucos. Se é pra usar uma metáfora, é melhor procurar outra. Festa ou banquete, estas não fazem sentido.

Sugiro algo mais desorganizado: hospício.

A cena literária é caótica. É um deus-nos-acuda. Uma pantomima com momentos complexos e outros confusos. A maioria dos escritores, mesmo os mais celebrados, não se sente pertencendo a um grupo coeso.

A única coisa que todos os escritores do mundo compartilham é a solidão. Pode ter certeza de que tua solidão e a minha são idênticas à dos papas que você citou.

Tua raiva também é alimentada, em parte, pelo comportamento de alguns escritores. Na verdade, você escreveu “de alguns showmen”. Você não suporta “essa gente espalhafatosa que se expõe muito mais do que expõe a própria literatura”.

Agora há pouco eu falei na “baixa auto-estima do escritor tupiniquim”. Somos tão mal-amados, tão desprezados no cenário nacional e principalmente no internacional, que muitas vezes, pra compensar a baixa auto-estima, o jeito é subir no palco e roubar o microfone.

Outro detalhe que não pode ser esquecido: literatura não paga as contas de ninguém. Por isso até o mais tímido dos escritores gosta de participar de feiras, bienais, colóquios, debates, etc. Ajuda a equilibrar a balança no final do mês.

Tente não ver os escritores através das retinas do puritanismo. Não idealize demais a atividade literária. Os livros são escritos por seres humanos, por criaturas imperfeitas, não por semideuses.

No mesmo cesto, ligada a essa “baixa auto-estima do escritor tupiniquim”, está a questão temática. Você reclama da pobreza criativa dos ficcionistas contemporâneos. Nesse ponto nós dois concordamos e desconfio que você sabe disso.

Não sou o articulista mais lido do Rascunho, mas suspeito que você leu meu Convite ao mainstream. Também é possível que você tenha chegado sozinho à mesma conclusão, seguindo seu próprio caminho. Não importa.

Você disse que, por medo de fracassar, “os ficcionistas contemporâneos são acomodados, conservadores, não arriscam, não deixam a zona de conforto, escrevem sempre sobre os mesmos velhos temas”.

Questão complicaaaaaada… Concordo com parte do que você disse: é verdade, a ficção tupiniquim não muda há mais de trinta anos. Mas não diria que é por falta de coragem, de atrevimento. Talvez seja por pura falta de talento mesmo.

Falo do talento excepcional de um Rosa, de uma Clarice, de um Drummond.

Talvez o talento excepcional pra articular novas idéias seja algo de natureza mineral ou vegetal. Algo que a gente respira, bebe ou come, sei lá. Com a atual crise ecológica, o talento desapareceu do planeta. Esgotamos o filão trinta anos atrás. Agora temos que nos virar sem ele.

Você se queixa também de que os escritores brasileiros estão mais interessados nas culturas européia e norte-americana do que na cultura brasileira. Que, mesmo quando escrevem sobre o Brasil, tentam ser universais da pior maneira possível: “imitando Saramago, Lobo Antunes, Thomas Pynchon, Jonathan Franzen, Ian McEwan e Coetzee”.

Pra fugir da rotina temática sem abrir mão de nossas raízes, você sugere, por exemplo, “um retorno à tradição iniciada principalmente por Mário de Andrade, com Macunaíma”. Uma viagem ao rico folclore nacional, no veículo mais sofisticado possível: a linguagem literária.

É uma proposta interessante. Audaciosa, até. Mas não sei se os ficcionistas tupiniquins toparão. Você não está propondo uma revalorização, por exemplo, do regionalismo. Do universo rural.

Se fosse isso, eu responderia que esse novo regionalismo já existe há pelo menos vinte anos, desde que o sergipano Francisco Dantas publicou Coivara da memória.

Você está propondo algo mais radical: um mergulho na cultura ancestral brasileira. Nos mitos fundadores. É isso? Saem as culturas greco-latina e judaico-cristã, entram as culturas tupi-guarani e iorubá. E outras sul-americanas: dos astecas, incas, maias…

Revolucionário demais, em minha opinião. Seria uma ruptura muito grande se de repente boa parte dos escritores aderisse a essa proposta. Sou a favor da renovação, não da revolução (sempre devastadora).

Eu entendo tua impaciência, que é também a minha mas em menor grau.

Eu mesmo já comecei a inserir em meus contos um pouco da demonologia folclórica. Nada que se assemelhe ao Macunaíma. Mas são inserções significativas, que deixam claro uma atitude, um compromisso temático.

Esses contos são recentes, inéditos. O único publicado até agora é o mais curto deles, Temporada de caça. Você poderá ler on-line, no Coletivo Claraboia (busque com o Google).

As ressalvas que você fez ao cosmopolitismo pra inglês ver (na verdade, você escreveu “cosmopolitismo colonizado”) de minha primeira coletânea de contos não me convenceram.

Minha identidade brasileira, tropical, latina, subdesenvolvida está toda lá, mesmo que os contos não falem explicitamente do Brasil. Procure com cuidado: a onça não está aí, mas suas pegadas estão.

É claro que não precisamos brigar por isso. Apesar de discordar de você sobre os pormenores, no geral nós dois parecemos concordar.

NOTA
Este texto representa os dois terços iniciais da mensagem que enviei recentemente a um jovem escritor paraibano, em resposta à sua mensagem de fevereiro deste ano. O nome do destinatário foi trocado, a fim de evitar qualquer constrangimento. Pra não ultrapassar o limite da coluna, limei o terço final, que não passava de uma defesa apaixonada, narcisista, despudorada de minha coletânea de contos, Paraíso líquido.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho