A coletânea Tênebra: narrativas brasileiras de horror [1839-1899], organizada por Júlio França e Oscar Nestarez, pesquisadores do grupo Estudos do Gótico, surge da “primeira biblioteca digital de narrativas obscuras brasileiras”, homônima ao livro, disponível em www.tenebra.org, e põe em evidência uma tradição pouco valorizada na literatura brasileira: a de escrita do medo e, em especial, das narrativas góticas.
São poucas as obras que apostam nesse enfoque. A antologia Medo imortal (Darkside, 2019) é uma delas e aposta em narrativas e nomes mais conhecidas, como Machado de Assis, Júlia Lopes de Almeida e traz o basilar Noite na taverna, de Álvares de Azevedo. Mas, como França e Nestarez dizem na apresentação do livro, o vácuo editorial de outras coletâneas sobre o assunto não é por acaso.
Como apontado pela dupla, as ditas “poéticas negativas”, como o terror, o horror, o gótico e o grotesco, “se articulam com as raízes profundas da narrativa de ficção no Brasil, e estão intimamente imbricadas com pautas caras ao mundo contemporâneo — por exemplo, a escrita de autoras mulheres e as temáticas relacionadas ao racismo herdado por nosso nefasto passado escravocrata”.
No entanto, ambos destacam uma série de fatores que fez com que as tradições do medo fossem deixadas de lado. O primeiro deles, por exemplo, é a preferência da crítica e da historiografia literárias brasileiras por obras que discutissem diretamente o que é o Brasil e a constituição de uma identidade brasileira, distanciada da colonização portuguesa. Então, as poéticas que não seguiam o programa, e, penso também, as que evidenciavam características sombrias, foram sufocadas.
Soma-se a isso um motivo comum a diversos campos da literatura no Brasil: a inexistência de um mercado editorial que valorizasse autores nacionais. Preferindo a tradução de autores emblemáticos estrangeiros, o florescimento de um autor ou poéticas emblemáticas foi prejudicado. França e Nestarez apontam o trabalho “quase arqueológico” para identificar as características da tradição brasileira de literatura de medo.
Por fim, junto aos dois fatores anteriores, surge o previsto desinteresse da crítica literária, pelo menos a de maior circulação e destaque, pelas obras de apelo popular — como eram consideradas as de cunho gótico.
Silenciamento do gótico
Como apontam França e Nestarez, o que há no campo da literatura brasileira é um silenciamento do gótico. Via-se a literatura gótica como um estilo de época, distante da realidade social, cultural e geográfica do território brasileiro, como se fosse uma literatura pouco meridional e não “uma linguagem artística em constante renovação”.
A introdução robusta dos dois autores aponta para um processo histórico que privilegiou sempre “o caráter documental da literatura em detrimento do imaginativo, favorecendo obras realistas e aquelas explícita e diretamente relacionadas às questões de identidade nacional”. Murilo Gabrielli, pesquisador citado pela dupla, chamou esse feito de “obstrução à literatura fantástica do Brasil”.
Nesse percurso, não só a literatura gótica, mas toda proposta estética que não se enquadrasse aos moldes realistas, perdia espaço na historiografia e na crítica. Algumas poucas produções fugiam à regra, salvas pelas interpretações alegóricas. Gabrielli coloca como exemplos Murilo Rubião e José J. Veiga, escritores de literatura fantástica, mas valorizados pela crítica por uma possibilidade interpretativa de compreender o texto fantástico como uma camuflagem da verdade ditatorial do Brasil.
O que surge, em um espaço onde escritores, políticos e pensadores são figuras que se misturam, é uma valorização da estranheza majoritariamente quando ela surge alinhada a um projeto nacional. Como escrevem os organizadores da coletânea, em diálogo com Gabrielli, “o maravilhoso seria tolerado não por seu teor fantasista ou imaginativo, mas por sua capacidade de dar conta do ‘conjunto de objetos e eventos reais que singularizam a América no contexto ocidental’. Macunaíma, portanto, quase nunca é lido como uma obra fantástica, mas alegórica”. E lembro também de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, tão valorizado pela leitura de Macondo como uma metáfora para a história da América Latina.
Essa divisão é visível se compararmos como duas figuras do mesmo período se transformaram ao longo dos anos: José de Alencar, conhecido pelo desenvolvimento do indianismo, e Álvares de Azevedo, escritor que estabeleceu as bases para o desenvolvimento do gótico no Brasil.
O que França e Nestarez evidenciam, logo de cara, é que as duas correntes são de origem europeia — descartando a hipótese de “ideias pouco meridionais”. O que os autores apontam é que “a poética gótica se estabeleceu no Brasil, mesmo à margem da corrente literária principal, e tem, sim, em Noite na taverna seu simbólico marco de origem. E foi podada em suas raízes não porque se baseava em uma poética estrangeira — a prosa de Alencar também o fazia, como vimos. Talvez a explicação para seu malogro esteja na visão de mundo pessimista que lhe dava forma, incompatível com as aspirações de uma nação que precisava apostar no futuro”.
Então, em Tênebra, os organizadores da coletânea invertem a atenção outrora dada aos aspectos temáticos e ideológicos e valorizam a obra literária como “artefato cultural produtor de efeitos sensorais de recepção”, apontando que mazelas podem ser discutidas em obras que não as abordam diretamente e que a geografia e as culturas brasileiras possuem diversos potenciais fóbicos.
Medos vários
A coletânea reúne 27 narrativas, muitas que tiveram devido conhecimento nos folhetins da época, e trazem autores de diversos movimentos literários, como Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Júlia Lopes de Almeida, Franklin Távora, Rodolfo Teófilo, Olavo Bilac e Cruz e Sousa. Como cada um dos autores tem apenas um conto incluído, aqueles com menos projeção, como Corina Coaracy, nascida nos EUA, mas que cresceu e desenvolveu sua carreira de escritora no Brasil, também recebem destaque.
O que essas narrativas evidenciam é que a literatura que Álvares de Azevedo propunha não era um resultado de uma personalidade mórbida e soturna, mas um projeto que queria desenvolver os potenciais estéticos do medo. Entram nessa proposta, por exemplo, elementos como o estabelecimento de um espaço narrativo opressor, a construção de personagens monstruosos, desenvolvimento de tramas com crimes, tabus, linguagem sombria e acontecimentos fantasmagóricos.
Como definem França e Nestarez, “o gótico, justamente pela força de suas convenções, é um template, um modelo, uma estrutura narrativa vazia a ser preenchida com os medos, as angústias e os horrores de cada local e de cada momento histórico”. Cada um dos autores que compõem a coletânea, de modo mais ou menos intenso, percorre um caminho estético distinto.
Entre as histórias de fantasma estão Sem olhos, de Machado de Assis, que discute o adultério e a repressão das mulheres na narrativa de um moribundo, e Jacinto, escrito pelo paraense Bruno Seabra, que mostra um jovem cético dos poderes de um vizinho feiticeiro e acaba sendo enfeitiçado pela própria armadilha.
Grande parte das narrativas envolve conhecimentos tidos como pagãos. Em A feiticeira, de Antônio Joaquim da Rosa, acompanhamos uma mulher que traiu seu marido e engravidou fazer um pedido de aborto para Cará Mendes, uma grande feiticeira pactária que supostamente existiu na vila de São Roque e realiza abortos em sua casa na floresta. O pedido gera uma série de incidentes macabros e violentos, com direito a infanticídio e loucura.
Outros contos, como O acauã, de Inglês de Sousa, deslocam o saber dos povos tradicionais para o campo maléfico. Nesse exemplo específico, uma anciã acompanha o nascimento de um bebê e deseja à recém-nascida: “que Tupã não te dê lágrimas, e a cobra grande seja sua amiga”. O resultado dessa predestinação é catastrófico e monstruoso.
Tal aspecto de transformação da figura feminina em algo temerário acontece em A nevrose da cor, de Júlia Lopes de Almeida, que trabalha as narrativas vampíricas pelos olhos de uma princesa egípcia, e também em Jupira, de Bernardo Guimarães, que conta a história de uma jovem de mesmo nome com instintos de sedução e violência sem nenhuma necessidade de auxílio sobrenatural.
No entanto, quando não estão em uma posição de aterrorizar os homens, muitas vezes as mulheres aparecem como vítimas e dão vazão ao aspecto de violência contra a mulher — tão conhecido até os dias de hoje. Consciência tranquila, de Cruz e Sousa, é um exemplo interessante. Ao narrar a história de um senhor de escravos, vemos um desabafo final. À beira da morte, o homem grita todas as atrocidades cometidas contra os escravos — e, principalmente, as escravas —, enquanto os presentes fingem não escutar nada. Ele descreve as punições para mulheres grávidas, estupros e assassinatos. Na conclusão da narrativa, Cruz e Sousa explica o título: mesmo cometendo todas as atrocidades, o rico morre com sua consciência tranquila…
Questões que envolvem tradições e o imaginário brasileiro também aparecem com frequência. Histórias de caçada, encontro com Mulas-sem-cabeça e Caiporas também estão presentes na coletânea, como o relato que acompanhamos em uma noite de farinhada narrada no conto Senhor das caças, de Juvenal Galeano, ou o encontro temeroso do protagonista de O ar do vento, Ave-Maria, de Oliveira Paiva.
Figuras de tradição cristã também são comuns, seja pela imagem recorrente de monges corrompidos, do judeu errante de Ahasverus, do padre Francisco Bernardino de Souza, ou na trágica história de O crime do convento de…, de Maria Benedita Bormann.
Diversas outras narrativas de crimes, fantasmas, tabus e perversões compõem a coletânea, como o desenvolvimento do medo sanitário em uma epidemia de cólera no litoral cearense no conto Violação, de Rodolfo Teófilo, e que trabalha com medos que ecoam até hoje — pelo menos naqueles que viveram os terrores da pandemia da covid-19.
Ao leitor acostumado pelas tradições da historiografia e críticas brasileiras, o que a coletânea traz é uma valorização de novas leituras e formas de se aproximar de autores consagrados — além do estabelecimento de tradições sistematicamente ocultadas da literatura brasileira. A pluralidade do livro aponta para a complexificação do campo e das tradições nacionais. Podemos ver Machado de Assis como escritor da sua “trilogia realista”, sim, mas que também saibamos da sua produção na literatura de medo, como em Sem olhos, ou de sua protoficção científica, em Sobre a imortalidade de Rui de Leão (Plutão, 2018).