A última viagem
Pisou na praia
pela primeira vez
em séculos —
Gaivotas o vigiavam.
Olor de algas.
O vento salino, ardente e Sul.
Odisseu desceu
da balsa murmurando
alguma coisa para si
num dialeto quase extinto.
Arrumou os remos, poucos peixes,
sob a música de um alto-falante
contra um pôr de sol salmão.
Depois, viu as lâmpadas frouxas
piscando nas casas do povoado.
Maresia de maconha alcançou suas narinas.
Funk.
Risadas altas.
Nenhum pescador o reconheceu.
Penélope nunca existira.
Aquela não era sua lenda.
Ítaca nunca existira.
Odisseu virou-se para a praia sem história
e nada disse:
acendeu um cigarro e contemplou
o azul escuro absurdo do mar noturno
contra as linhas brancas incansáveis
da arrebentação.
…
Google earth
Essa dor é muito antiga.
Um Colosso de Rodes, visto de cima,
O Museu Britânico, o Taj Mahal,
O Pão de Açúcar, o Atacama, um parque em Lima.
Antes ela sabia de cor o Bhagavad-Gita,
A oração do meio-dia,
A Torá, o Necronomicon,
Os inscritos na tumba de Ikhnáton.
Na areia sofria um Graal.
Sentia o remorso do mar.
Parece com Quéfren, vista assim
de frente, e de lado com ninguém.
Ontem parecia mais antiga. Hoje, nem
mágoa: não se parece com nada.
…
Mata Atlântica, manhã
Muralha de floresta, ligada por lianas, parasitas.
Verde umidade.
Som de rio.
Uma trilha,
túnel de bambus, paisagem raiada e a luz
de outono coando, precisa,
em outro sonho, ilha, enigma.
O tempo: passado.
O tempo: futuro.
O agora conquistado
e perdido nas dobras do instante
como um beijo, uma partida
no vidro ávido dos olhos.
…
Costa de dentro
1.
Dama de branco
Onipotente e furiosa
Que inveja os morros mudos
E disputa as dunas úmidas
Com sua febre de tanto
Chova sobre o pântano
Banhe-me com seu pranto.
2.
Percute no tempo
O peso da água,
Sua voz
sangra
Um hálito noturno
Sereno sarraceno
3.
céu que bebe Saturno
labirinto instantâneo
a imagem se descasca
brilha no inverno de um olho
esfria no inferno da luz
dublê do horizonte