Quando se pensa no nome de Benedito Nunes, logo nos vem à mente a figura do crítico brasileiro que melhor aproximou a literatura da filosofia, e, nesse sentido, não faltam estudos em que o famoso professor de Belém do Pará é colocado em destaque. Bastaria, apenas para tanto, lembrar o que afirma Abrahão Costa Andrade a respeito: “relacionando filosofia e literatura, nosso Autor, mais do que crítico literário, preconiza um modo de pensar todo próprio, o qual poderíamos chamar uma filosofia da Inquietação”. Leopoldo e Silva também, de modo análogo, percebe uma verdadeira oscilação entre um “pensar poético” e um “poetar pensante” na capacidade analítica do renomado intérprete literário.
Quem nos conta tudo isso é a estudiosa Jucimara Tarricone, na obra Hermenêutica e crítica: o pensamento e a obra de Benedito Nunes, lançada em 2011, numa co-parceria das editoras da Universidade Federal do Pará e da USP. Mas ela vai muito além de tais assertivas ao nos fazer percorrer os caminhos daquelas filosóficas inquietações. Se é verdade que as referidas linguagens se intercomunicam, no entendimento da autora, embora o poético ingresse na filosofia, e o filosófico, na poesia, tais categorias em Benedito Nunes não se igualam, nem perdem seus traços característicos. Aliás, é o próprio hermeneuta (em palavras retomadas por Jucimara) quem afirma:
Não sou um duplo, crítico literário por um lado e filósofo por outro. Constituo um tipo híbrido, mestiço das duas espécies. Literatura e Filosofia são hoje, para mim, aquela união convertida em tema reflexivo único, ambas domínios em conflito, embora inseparáveis, intercomunicantes.
Talvez por isso mesmo Clarice Lispector (a quem o autor dedicou grande parte de suas análises) tenha afirmado, certa feita, não vê-lo como crítico, mas como algo que ela não sabia o que era.
Papel da crítica
Com o rigor dos bons textos acadêmicos, Jucimara perscruta detalhadamente (por meio de um vasto e complexo apoio teórico) como Benedito Nunes se inscreve enquanto intérprete hermenêutico. Segundo sua perspectiva de análise, não se trata de enquadrá-lo numa ou noutra vertente, mas de verificar, evocando as palavras do próprio professor que “o que separa o intérprete do leitor é a tênue película da consciência crítica e histórica, que une, por sua vez, o intérprete ao chamado crítico literário”.
Nesse intento, o livro que aqui se apresenta visando alargar o sentido e a importância da produção crítica de Nunes envereda pelas lides da leitura hermenêutica, da investigação filosófica da obra literária, entendida enquanto linguagem conectada com as tendências do pensamento histórico-filosófico e também como conjunto de idéias que “são problemas do e para o pensamento”.
Um dos aspectos mais relevantes da exaustiva análise levada a cabo pela autora é o de procurar perceber como se constrói a abordagem crítica de Nunes, e o grande ganho, a partir de tais inventivas, é o de chegarmos a um verdadeiro redimensionamento do papel da crítica literária, inclusive dos modos como a concebemos hoje:
Na esteira de Ricouer (1990), de quem absorve o conceito de “texto”, o ato de ler, para Nunes, é o movimento especular em que o leitor, ao compreender o texto, compreende-se a si próprio. Nesta mobilização, a hermenêutica que a obra do discurso nos oferece é a da experiência do mundo do texto, ou do texto transformado em mundo, caracterizado por uma referência outra, distante da subjetividade do autor.
Daí porque o crítico-leitor Benedito Nunes assim confessa sua reação diante do episódio da morte de Diadorim do Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa:
Até hoje, depois de tantos anos da primeira leitura de Grande sertão: veredas, não posso deixar de emocionar-me nesta passagem. Compartilho o sofrimento do outro para quem nenhuma consolação, humanamente falando, é possível. E compreendo a ação do romance, compreendendo-me (juízo) através dela, em minha condição de sujeito, fadado ao sofrimento. O movimento completou-se fora do livro, a experiência (estética) do conflito prolongada na experiência de vida do leitor (Katharsis).
Importa notar que é exatamente da tensão entre o texto e o leitor que se dará a passagem da experiência estética à crítica propriamente dita, o que parece ser uma das premissas do que se pode entender como crítica criativa.
A propósito, em interessante capítulo, intitulado “Fundamentos do método crítico”, a autora nos fará ver, de perto, as diversas acepções que o termo foi assumindo, na visão de vários estudiosos da literatura. Assim, enquanto Gerd Bornheim, por exemplo, entende que o exercício crítico se torna autônomo, “a concorrer, de certo modo, com a criatividade da própria arte”, em oposição explícita Afrânio Coutinho percebe no mesmo uma atividade reflexiva, em que, embora tendo por meta o estudo da literatura e dos gêneros, a crítica não se configura como um deles.
Seja como for, os diversos posicionamentos divergentes sobre a crítica também foram foco de análise de nosso autor. Mas, especialmente nas obras Ocaso da literatura ou falência da crítica? (1999) e Crítica literária no Brasil, ontem e hoje (2000), Nunes enfatizou a fase áurea de nossa crítica, situando-a na década de 1950, como sinal de grande ruptura:
[…] novo momento de tensão entre a leitura crítica […] enriquecida com a atividade de poetas-críticos — Mário Faustino, Décio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Mário Chamie — e a escrita dos escritores, abalada e fecundada com a publicação de Grande sertão: veredas (1956) de Guimarães Rosa, Duas águas (1956), de João Cabral de Melo Neto, e Laços de família (1960), de Clarice Lispector.
Essa crítica deu-se, basicamente, nos jornais, e cumpre observar o quanto a imprensa colaborou para a formação consistente do exercício daquela atividade em nosso país. A propósito, Jucimara indica como importantes referências Poder, sexo e letras na República Velha, de Sergio Miceli (1977), e História da imprensa no Brasil (1978), de Nelson Werneck Sodré.
Nunes se iniciou na atividade crítica jornalística e cumpre notar o quanto aquela tradição deixou e ainda deixa marcas nas diversas abordagens que se dirigem à interpretação dos textos literários.
Leitor habilitado
No cerne do debate aqui proposto sempre acaba se tocando, também, na questão da leitura, tema trabalhado pelo pensador em Ética e leitura: “a prática da leitura seria um adestramento reflexivo, um exercício de conhecimento do mundo, de nós mesmos e dos outros”.
O crítico, então, como leitor habilitado, é o que compartilha com outros leitores sua experiência de leitura do texto. Nesse sentido e conforme o que ensina Luiz Costa Lima em Mímesis: Desafio ao pensamento (2000), o crítico não é aquele que “mostra” aos leigos o que eles por si só não saberiam ver, mas é o que “usa de uma instrumentação, só às vezes técnica, para tornar visível a presença de uma propriedade que, em tese, seria a todos acessível”.
E isso é o que, exemplar e amplamente, Benedito Nunes, em síntese, nos deixa como legado: o de nos ensinar a ler o literário, alargando nossa percepção e capacidade de decifrar um texto.
Em tempos como os nossos, em que o ocaso da crítica vem intimamente relacionado ao da crise da leitura, o estudo dedicado e minucioso de Jucimara Tarricone sobre nosso grande pensador se impõe como uma das análises mais completas e instigantes já efetuadas a respeito. Mais que uma tese acadêmica merecedora de publicação, essa obra nos remete à lembrança de que o Brasil já foi capaz de produzir críticos literários brilhantes, como o professor do Norte que insistia em poetar pensando ou em pensar poetando.
Benedito Nunes
Filósofo, professor, um dos maiores críticos literários do Brasil, Benedito Nunes (1929-2011) nasceu e morreu em Belém do Pará. Foi um dos fundadores da UFPA. Ensinou literatura e filosofia em outras universidades do Brasil, da França e dos Estados Unidos. É autor de O drama da linguagem, uma leitura de Clarice Lispector; O tempo na narrativa; Introdução à filosofia da arte; O dorso do tigre (ensaios literários e filosóficos); João Cabral de Melo Neto (Coleção Poetas Modernos do Brasil); Oswald Canibal (Coleção Elos); Passagem para o poético; A filosofia contemporânea; No tempo do niilismo e outros ensaios e Crivo de papel (ensaios literários e filosóficos). Recebeu dois Prêmios Jabuti de Literatura: em 1987, pelo estudo da obra de Martin Heidegger que culminou em Passagem para o poético; e em 2010, pela crítica literária A clave do poético. Em 2010, foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra.