Luzia, de Susana Fuentes, é um romance cercado de inquietações, questionamentos, sensibilidade e leveza. Italo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, destacava esta última característica como uma qualidade importante para a produção literária deste nosso século 21. Isto implica considerar que leve deve ser a linguagem poética, leve deve ser a forma de abordagem do peso das dificuldades ou deslumbramentos das situações-limite vivenciadas.
É dentro dessa tensão entre o peso dramático e a leveza poética que Luzia é construído. Citando Calvino: a leveza se dá “sobretudo naquela específica modulação lírica e existencial que permite contemplar o próprio drama como se visto do exterior e dissolvê-lo em melancolia e ironia”. Ironia, neste caso, diz respeito àquele olhar crítico capaz de ver além da própria dor: “Qual é sua dor”, Luzia? É uma dor somatizada nas entranhas, estômago, cabeça, cicatrizes da pele; uma dor que parte de uma subjetividade lírica e existencial para falar de uma condição feminina e humana que se amplia, vai além, atinge outras e outros. Não deixa de ser uma dor coletiva, uma ferida aberta, forjada pela violência de uma sociedade opressora e negligente para com a infância e suas delicadezas e necessidades.
O conteúdo lírico manifesta-se a partir de uma poesia cotidiana. A natureza doa generosamente seus elementos: a árvore, o vento, a chuva, o mar, a areia, até as cinzas de um passado perdido na memória. “Começava a ver chispas de um tempo enterrado sob as cinzas. Cinzas eram tão leves. E o vento sopra, uma fagulha pode reacender num sopro. O passado vinha ao mesmo tempo em que a dança acontecia. Lá fora, um trovão.” A menina tem por companheira de seu abandono e solidão uma árvore que a abriga em seus galhos mais altos, guarda seus escritos e segredos. “Quando derrubam uma árvore, um deus fica sem casa.” Derrubaram a árvore de Luzia, mais uma dor na lista de suas perdas.
Jogo narrativo
O romance é organizado em seis capítulos e um preâmbulo que funciona como uma introdução, com o subtítulo De caixas e gavetas. Impossível — ou mesmo desnecessário — estabelecer o resumo do enredo da narrativa. Primeiro, por sua composição em fragmentos sem uma linearidade temporal fixa ou definida. Os principais acontecimentos que se submeteriam a uma descrição da intriga vão se revelando aos poucos, através do mosaico de superposição de ação, recortes e anotações resgatadas de caixas e gavetas, memórias de uma história de vida. Destacá-los e adiantá-los para os leitores comprometeria o sabor do suspense e das surpresas que nos aguardam durante a leitura. A própria construção dos personagens também passa por esse processo de aparente diluição ou imprecisão de traços, o que nos convida a preencher vazios e a participar da elaboração da rede que vai se tecendo. Em linhas gerais, uma narradora fala de Luzia menina através de anotações do passado, e da personagem adulta em um intrincado presente narrativo. Este processo algumas vezes parece correr simultâneo, tanto entre passado e presente quanto entre espaços físicos, a cidade do Rio de Janeiro e a de Esperanza.
A narradora apresenta-nos Luzia com um distanciamento estratégico. Ao mesmo tempo em que fala de um outro, estabelece tal intimidade que parece ser de si mesma que está falando. Será? Luzia ganha voz própria a partir de um baú de lembranças apresentado em manuscritos de um passado que vai se revelando, ou melhor, vai sugerindo mistérios e labirintos a percorrer. “Debruçar-me sobre as páginas não significa vasculhar o passado. É espreitar o presente”, diz a narradora. O jogo narrativo, entretanto, vasculha o passado através de fragmentos de um tempo registrado na escrita do corpo, com o corpo, numa busca: o resgate do corpo: “Reunir pedaços. É todo meu corpo que deseja começar. Porque foi nele que você começou a escrever. Ele está aqui, em cada traço do tempo em cada ferida e cicatriz”. Ou seja, o passado que compõe o corpo do texto inscreve-se no corpo da personagem como uma forma de ressignificar o presente. E a partir disso, recomeçar.
Os personagens, inclusive a narradora, estabelecem desde o início uma relação muito íntima com Luzia. São, cada um, de alguma forma, “possibilitadores” de um olhar indireto da protagonista sobre si mesma, aquela lente necessária para ler a verdade nua e crua sem virar pedra, sem perder a ternura jamais. Artimanha do mito no qual Perseu só consegue degolar com sua espada a cabeça da Medusa por não olhá-la nos olhos. Observa-a pelo reflexo do seu escudo, lê seus movimentos e a vence com um olhar indireto. Cada personagem é um outro do outro lado do espelho que, pelas diferenças ou identificações, ajudam Luzia a reunir seus próprios pedaços. O espelho é um elemento recorrente no livro e importante de ser observado como signo de busca de identidade dos sujeitos em construção, ou de uma subjetividade latente em busca de sentidos escorregadios e precários. Longe de definir uma imagem nítida ou fixa, funciona como uma lente de leitura dos pedaços de um eu estilhaçado. O espelho pode ser o objeto em si, um lago de Narciso, um escudo de Perseu, a analogia de uma metáfora ou os olhos do outro. Daí a importância dos demais personagens na constituição de Luzia.
A leveza também se estabelece através de outros elementos poéticos. Lembremos que o livro abre e fecha com poemas em prosa que destacam as rosas como lentes de leitura da protagonista: “Luzia, não fuja./ Você sabe de você pelas rosas./ Você fazia pouco das rosas. Apreciava as margaridas, tão leves e soltas/ e os girassóis, tão galantes e sóbrios”. Luzia tem a beleza e a vivacidade das rosas, e sabe de si pelas rosas, pois seus espinhos lá estão em seu corpo, marcando e limitando seus movimentos, que já não são mais leves e soltos quanto os das margaridas.
Representações
Luzia é também a Tinita da infância. Perde a mãe prematuramente e sobrevive do conforto de suas doces lembranças. Sente-se abandonada pelo pai, um pesquisador viajante e “importante” vivendo na Alemanha. Estabelece ligação com ele através da língua estrangeira que a fascina. O exercício da escrita e da leitura exige lutar com as palavras e nomear sua dor, sentimentos, dúvidas e desafios. Além de tudo, é um prazer brincar com os avessos: “O lua, A sol”, a indefinição de gêneros da menina Luzia, a Tinita moleque como um menino de rua, alpinista das árvores, livre, leve e solto. Resgata o apelido de infância através do seu personagem no filme: o palhaço Tinita.
Dora acompanha Luzia nos desejos e traquinagens de criança. Como irmã, fantasma ou saudade do que poderia ter sido? É um dos pedaços que precisa ser reunido para os precários, mas necessários, sentidos se constituírem. Lisbet menina, encantada com os ensaios do filme e da amiga atriz, lembrava à protagonista um tempo bom que lhe foi roubado num dia fatídico do passado. Luzia mulher e atriz volta a escrever e a se encantar com o amor graças ao encontro de um belo par de olhos de seu diretor, Joaquim Marino. Resgata o apelido de infância através do seu personagem no filme. Assume o papel masculino do palhaço Tinita. Lembra com a nova máscara o olhar penetrante e atraente de Muril, o amor perdido de seu diretor. Representa o palhaço que faz rir e tem uma dor no peito e nos olhos. A narradora faz aí referência a Os palhaços, de Fellini. O seu gato também não pode ser esquecido nesse elenco. É o companheiro fiel e arisco que na solidão da cidade lhe ensina os cuidados com o outro e a delicadeza. Ele fica com D. Josefa, a vizinha prestativa, enquanto ela parte para Maraberto. Em Escola de gigantes, livro de contos de Susana Fuentes, gatos também disputam espaço com outros atores, personagens e cenários.
A narrativa literária dialoga com a cinematográfica não apenas do ponto de vista temático, mas também incorporando técnicas do cinema. Esse diálogo discute o processo de produção artística numa perspectiva metaficcional: Luzia escreve um livro que se compõe de múltiplos fragmentos com superposição de tempos e espaços diferentes. Como o movimento de uma câmera, os referenciais do espaço entram em cena: ora o quintal da Glória da infância, ora Botafogo, onde foi morar com os tios como órfã de mãe; ora o Jardim de Alá de mulher adulta e independente, ora Maraberto das filmagens. Sem qualquer compromisso com uma ordenação cronológica, a memória, o sonho, o devaneio vão pinçando lembranças, criando cenários e máscaras. Tomadas, fotogramas, cortes, poemas, desenhos e músicas compõem um filme-texto que se faz de vozes e silêncios, de pedras e de areias. Como num O livro de areia, lembremos Borges, transitam personagens que trocam de máscaras, à maneira das representações teatral e cinematográfica, numa infinita mobilidade. Os papéis nos quais se registra vida e ficção entrecruzam-se como os que são representados pelos personagens. “Dora nas páginas de areia caminha não se sabe para onde. Some no caderno e escapa à linha antes de terminar a página.” A dança, a música, o cenário de Maraberto, praia, vento, areia e circo dão movimento e esperança a Luzia de superar seus traumas de violência, de abandono e de uma inocência perdida para seguir em frente.
Calvino retoma um verso de Paul Valéry para nos lembrar que “é preciso ser leve como o pássaro, e não como uma pluma”. A leveza do pássaro consiste na superação e domínio do peso do próprio corpo no impulso de voar e sustentar-se em equilíbrio. É a linguagem poética, em suas imagens mais sutis e, ao mesmo tempo, mais concretas, que se transforma em asas dessa poeta-pássaro que aprende, a duras penas, mas aprende, a liberdade de ganhar os ares.