A voz da terra

Obra do cabo-verdiano Corsino Fortes revela-se inesgotável em sua consistência estética e amplitude temática
Corsino Fortes, autor de “A cabeça calva de Deus”
01/06/2012

Ao estudar a Ilíada, Richard Martin tratou como tema central a distinção entre o muthos e o epos, destacando, por um lado, a associação entre muthos e a autoridade, o poder, o discurso público; e, de outro lado, o vínculo entre epos e o próprio ato da fala, em geral mais breve, cujo foco seria essencialmente o que é dito (e não a dimensão performativa da fala). Martin delineia essa distinção a fim de estabelecer a posição dos heróis e deuses, no texto homérico, a partir da extensão de seus discursos; conquanto isso não nos seja particularmente relevante, sua reflexão nos pode interessar se — algo abusivamente, talvez — a encaminharmos para outra direção, considerando suas implicações para os modos de recepção contemporâneos do texto poético.

Se, hoje em dia, estão relegados ao esquecimento poetas cuja importância era amplamente reconhecida até pouco mais de um século (no espaço lusófono, basta evocarmos Junqueira Freire, Fagundes Varela, Gomes Leal ou Guerra Junqueiro, por exemplo), para isso contribui o que hoje neles parece excessivo e verborrágico, numa época em que a concisão é tida como valor literário fundamental — e não apenas na poesia, como denuncia a febre dos “microcontos”. Daí a impertinência da epopéia na contemporaneidade, sobretudo se concebida levando-se em conta as dimensões destacadas por Martin, que consideram não apenas o que é dito, mas também o modo como é dito. Com poucas exceções, caracteriza boa parte da poesia produzida atualmente a (ainda) predominante tendência a se associar o discurso poético à fala cotidiana, muitas vezes com uma deliberada aproximação do trivial, embora pareça crescente certo gosto pela afetação hermética; para além disso, a concisão e a fragmentação permanecem gozando de grande prestígio.

Por tudo isso, A cabeça calva de Deus, do cabo-verdiano Corsino Fortes, dificilmente poderia ser avaliado sem um necessário distanciamento das práticas de leitura contemporâneas de poesia, ao menos no Brasil. Trata-se de nada menos que uma “trilogia épica fundacional”, para usar a adequadíssima definição de Ana Mafalda Leite constante do posfácio à edição brasileira. Não obstante, o fundamental é que, a meu juízo, a poética de Corsino Fortes se aproxima essencialmente daqueles aspectos constitutivos do épico homérico, na medida em que resgata o tratamento da extensão discursiva (diga-se de passagem, cuidadosamente administrada, conforme a etapa de desenvolvimento da composição poética) e do aspecto performático na estrutura poética (por meio de conflitos de vozes que suscitam uma encenação dialógica). Não obstante, a aproximação se resume a essa dimensão essencial; não me parece possível ir além, mormente por alguns aspectos subjacentes à criação de Corsino, dos quais passo a tratar.

Eclosão do lirismo
Publicada em cuidadosa edição organizada por Floriano Martins, com ilustrações de Fernando Gonçalves que se coadunam com o vigor do texto poético, A cabeça calva de Deus constitui uma trilogia concebida ao longo de quase três décadas, composta por Pão & fonema (1974), Árvore & tambor (1986) e Pedras de sol & substâncias (2001). É notável que, mesmo havendo um largo espaço de tempo entre a publicação de cada um dos livros — 12 anos entre o primeiro e o segundo; 15 entre o segundo e o terceiro —, há entre eles uma nítida consistência estética, para além de representarem efetivamente etapas no desenvolvimento de um ambicioso projeto literário. Se destaco esses atributos, é para enfatizar que se trata de uma obra de gestação lenta, que emerge em momentos distintos, sem que isso implique qualquer tipo de contingência.

Consideração que merece ser feita, e que já se faz nítida pelo título dos livros, é o lugar central ocupado na poética de Corsino Fortes pelo conectivo “e”, cuja presença é visualmente ressaltada ora pelo uso do signo “&”, ora pela grafia em maiúscula “E”. Cabe destacá-lo a partir da observação de que o discurso poético é projetado como uma simulação da voz da terra, a afirmar-se num processo genesíaco em que acolhe todas as diferenças. Observe-se a lógica subjacente aos títulos dos três livros constantes da trilogia: a soma do Pão (o alimento, a sobrevivência; por extensão, a vida) com o Fonema (a voz que nomeia e concede o sentido) se reflete na soma da Árvore (a natureza reconhecida, espaço da habitação) com o Tambor (o canto e a constituição da cultura), ressoando finalmente na síntese entre as Pedras de Sol (a luminosidade telúrica, pluralizada, simbolizando a irradiação da força vital) e as Substâncias (abertura da natureza à dimensão metafísica, sem o apagamento da multiplicidade).

Há, com efeito, uma projeção da tessitura poética na superfície da terra, dela fazendo o espaço de eclosão do lirismo; e isso é feito com tal intransigência que a própria subjetividade é inicialmente deslocada para um espaço periférico, como que dissolvida em meio à emergência da diversidade, para surgir mais nitidamente personificada num momento tardio — em particular, no terceiro livro, por meio das referências a nomes da cultura cabo-verdiana que sustentam o processo de (re)criação. Se afirma a estrofe inicial da Proposição de Pão & fonema “Ano a ano/ crânio a crânio/ Rostos contornam/ o olho da ilha”, a Proposição & prólogo de Árvore & tambor já menciona “Os homens que nasceram da Estrela da manhã”, bem como “A pátria que nasce”, “Do coração da revolta”. Por outro lado, o Oráculo de Pedras de sol & substâncias compara a pedra a “um poeta bissexto” que “Leva quatro anos de pudor/ E quarenta & tantos anos de paixão/ Para inundar o deserto da estiagem/ Com o dilúvio de chama que bebe/ Nas crateras do jazz & batuque da esperança”. A emergência da terra cabo-verdiana é o que suscita a criação do homem e da mulher, aqui não concebidos num sentido abstrato, mas como indivíduos dotados de singularidade e de nome(s) — Luísa Queirós Figueira, Manuel Figueira, Ana Procópio, Aurélio Gonçalves, entre outros que constituem os heróis da epopéia de Corsino Fortes.

Por sua amplitude temática, pelas inúmeras referências que encerra, por suas múltiplas camadas de significados, A cabeça calva de Deus não é obra que se renda a definições fáceis ou a qualificações redutoras; trata-se de um texto poético denso, que demanda claves de leitura capazes de dar conta de suas referências estéticas, políticas, antropológicas e históricas. “Cultura! toda ela/ É a expressão dinâmica/ De um caos inicial”, afirma um dos poemas do canto quinto de Árvore & tambor. E a escrita de Corsino Fortes, enquanto manifestação do riquíssimo universo cultural cabo-verdiano, tem o cuidado de encerrar (inclusive em seus aspectos formais) a primordial estrutura caótica que enseja toda a complexidade. Trata-se de uma poesia que demanda o enfrentamento — perante o qual, não obstante, revela-se inesgotável.

A cabeça calva de Deus
Corsino Fortes
Escrituras
287 págs.
Corsino António Fortes
Nasceu em 14 de fevereiro de 1933, em Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. Licenciado em Direito, foi delegado do Ministério Público e juiz de direito em Angola, exonerando-se voluntariamente do cargo de magistrado em abril de 1975. Em 1974-1975, foi militante ativo do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Ocupou diversos cargos políticos em Cabo Verde, dedicando-se também à carreira diplomática. É sócio-fundador da Associação dos Escritores Cabo-verdianos.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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