O cearense Everardo Norões é um autor experiente, com muitos livros publicados, em gêneros como a poesia, a crônica e os contos, e muitos prêmios, incluindo o Portugal Telecom de 2014 pelo livro de contos Entre moscas.
O leitor desavisado começará pensando que sua mais nova coletânea de narrativas breves, Garrafas que sonham macacos, trata-se de uma leitura antiquada, pouco apetitosa para os dias atuais. Muitos dos protagonistas são homens bem educados, que tiveram o privilégio de estudar e ter uma profissão liberal, que vivem em cidades extremamente desiguais reclamando de tudo. O velho Recife, a velha Europa, o velho.
Aqui aparece invertido o drama do crítico contemporâneo. Ele tem lido histórias novas, com personagens ainda raros e tão interessantes para nossa literatura, mas, com frequência, tão mal contadas. Aqui é o contrário. Se está diante de um escritor veterano. Por trás da disfarçada melancolia lenta e turva — como os diversos rios que são nomeados nos contos — uma exuberância precisa de palavras, de sintaxe rica e pouco óbvia. De ausências tão bem talhadas, que parágrafos tão diferentes se ligam perfeitamente — em link, como diz Lourival Holanda — um ao outro. (Ao modo do Cinema Novo — ou será Nouvelle Vague?).
A estrutura interna dos contos vai se repetindo de formas variadas: um início morno, reclamando de uma materialidade bem descrita em decadência, mofo, secura, leve podridão que abraça tudo, como o que vem de um passado não resolvido. São textos passadistas, mas não passados. Em seguida, então, disfarçadamente também, sem assumir, sem excesso de emoção, uma riqueza de detalhes, deixar-se surpreender novamente, a descrição de uma pequena estrada, uma preciosidade vinda de outro tempo e espaço, ou o perigo de um cinzeiro que explode, uma retomada da vida no presente.
O sol era uma escadinha de três degraus, os tracinhos delicados transformando a escrita em algo sublime, diferente do alfabeto latino, triste e seco. E se perguntava: o que lhe teria acontecido se tivesse nascido num lugar como Tóquio ou Istambul?
Para retornar, por fim, ao estado anterior, mais ou menos intocado:
Em nossa última conversa, despedi-me sem a intenção de reencontrá-lo. Não trocamos números de telefone ou endereços eletrônicos. Precisava desvencilhar-me de Peter para não acabar subjugado por sua presença, comprometendo o isolamento necessário à revisão de meus textos. O que aprendi em sua companhia foi suficiente para construir um personagem enigmático, uma ficção. Além disso, percebi que o convívio com certas pessoas é um “desremédio”, como diria Lucy, minha colega de departamento, especialista em neologismos.
Ironicamente ou não, o movimento das histórias é como o das mulheres descritas pelo personagem do conto Sinos de Saint-Germain:
Mulheres deviam ser passageiras, como orquídeas, mesmo formato e tempo de floração. Uma vez por ano a exalar um perfume que iria se juntando a outros cheiros até elaborar uma “saudade”.
Admiração e frustração
Os contos inspiram então admiração e uma pequena frustração pelas melhores histórias como Martha, my dear e Cinzeiro estilhaçado não se desenvolverem mais. O leitor imagina um romance para cada um dos contos, que parecem compor também um livro de cenas, de ideias, de tableaux, que se iniciam, apresentam personagens e cenários bem descritos, sólidos, com potencial e depois desaparecem, elaborando uma saudade.
O cavalo nas mãos de um enxadrista a três ou quatro lances do mate fatal lembra o pai em uma transição mnemônica:
Bicho que conhece bem desde pequeno. O coice, o osso partido, o pai amarrando taliscas na perna com barbante, o calor e os arranhões na pele dolorida. — Já ouviu homem chorar?
As palavras não se repetem, a exuberância — “taliscas” — é precisa e ressoa, sem virtuosismo barato, nas palavras seguintes, “doloridas”. São contos de quem lembra — ou seja, reinventa — com a precisão das tônicas que se anunciam, das rimas que se intuem e das assonâncias — moudjahid seguido de drone — as asperezas, também, do tempo. “O chamado mistura tempos e dissolve-os para remontá-los”.
A intertextualidade generosa abre caminhos para dentro e fora dos contos. A escolha justa vem também da memória. Versos de músicas e poemas, de outras vozes, ajudam a compor a mnemônica. O que explica esse movimento de melancolia, reencanto e nova queda? As inúmeras guerras, ditaduras e torturas do século 20? O narrador que acompanha estes homens e mulheres parece um exilado, olha como um exilado, registrando tudo em detalhe, mas sem a possibilidade de apego.
Conhece a do espanhol, exilado no México? Batia com o dedo na mesa todos os dias e dizia: En la próxima Navidad vuelvo a España. O dedo encolheu de tanto bater!
São contos que se pode ler e reler, como a melhor literatura. A precisão do olhar de cada personagem nos ensina a ver novamente. São visões específicas, únicas, bem talhadas. A experiência do escritor oferece a distância apropriada, cria cenas cheias o bastante para que o leitor possa habitá-las, mas abertas o bastante para que ele também possa se mover nelas. Nisso se soluciona um pouco aquela frustração de que as histórias, muito curtas, acabam logo. Com surpresa, o leitor nota que muito mais permanece. Manoel Ricardo de Lima descreve sua poesia com palavras que explicam também estes contos e sua réstia:
O empenho de Everardo Norões é mover este quase nada, este desapercebido do poema e o desapercebido que é o próprio poema, por dentro de uma preposição ou de um lugar que pode ser o seu ou de ninguém. Entre a poeira e a réstia, entre o que sobra e o que é pedaço, entre o que é luz e sombra, num gesto muito próximo de um chiaro-oscuro, para dizer do poema como um documento humano ainda insistente.