Breve virtuosismo

Contos de "Garrafas que sonham macacos", de Everardo Norões, apresentam sintaxe rica e pouco óbvia
Everardo Norões, autor de “Garrafas que sonham macacos”
01/07/2023

O cearense Everardo Norões é um autor experiente, com muitos livros publicados, em gêneros como a poesia, a crônica e os contos, e muitos prêmios, incluindo o Portugal Telecom de 2014 pelo livro de contos Entre moscas.

O leitor desavisado começará pensando que sua mais nova coletânea de narrativas breves, Garrafas que sonham macacos, trata-se de uma leitura antiquada, pouco apetitosa para os dias atuais. Muitos dos protagonistas são homens bem educados, que tiveram o privilégio de estudar e ter uma profissão liberal, que vivem em cidades extremamente desiguais reclamando de tudo. O velho Recife, a velha Europa, o velho.

Aqui aparece invertido o drama do crítico contemporâneo. Ele tem lido histórias novas, com personagens ainda raros e tão interessantes para nossa literatura, mas, com frequência, tão mal contadas. Aqui é o contrário. Se está diante de um escritor veterano. Por trás da disfarçada melancolia lenta e turva — como os diversos rios que são nomeados nos contos — uma exuberância precisa de palavras, de sintaxe rica e pouco óbvia. De ausências tão bem talhadas, que parágrafos tão diferentes se ligam perfeitamente — em link, como diz Lourival Holanda — um ao outro. (Ao modo do Cinema Novo — ou será Nouvelle Vague?).

A estrutura interna dos contos vai se repetindo de formas variadas: um início morno, reclamando de uma materialidade bem descrita em decadência, mofo, secura, leve podridão que abraça tudo, como o que vem de um passado não resolvido. São textos passadistas, mas não passados. Em seguida, então, disfarçadamente também, sem assumir, sem excesso de emoção, uma riqueza de detalhes, deixar-se surpreender novamente, a descrição de uma pequena estrada, uma preciosidade vinda de outro tempo e espaço, ou o perigo de um cinzeiro que explode, uma retomada da vida no presente.

O sol era uma escadinha de três degraus, os tracinhos delicados transformando a escrita em algo sublime, diferente do alfabeto latino, triste e seco. E se perguntava: o que lhe teria acontecido se tivesse nascido num lugar como Tóquio ou Istambul?

Para retornar, por fim, ao estado anterior, mais ou menos intocado:

Em nossa última conversa, despedi-me sem a intenção de reencontrá-lo. Não trocamos números de telefone ou endereços eletrônicos. Precisava desvencilhar-me de Peter para não acabar subjugado por sua presença, comprometendo o isolamento necessário à revisão de meus textos. O que aprendi em sua companhia foi suficiente para construir um personagem enigmático, uma ficção. Além disso, percebi que o convívio com certas pessoas é um “desremédio”, como diria Lucy, minha colega de departamento, especialista em neologismos.

Ironicamente ou não, o movimento das histórias é como o das mulheres descritas pelo personagem do conto Sinos de Saint-Germain:

Mulheres deviam ser passageiras, como orquídeas, mesmo formato e tempo de floração. Uma vez por ano a exalar um perfume que iria se juntando a outros cheiros até elaborar uma “saudade”.

Admiração e frustração
Os contos inspiram então admiração e uma pequena frustração pelas melhores histórias como Martha, my dear e Cinzeiro estilhaçado não se desenvolverem mais. O leitor imagina um romance para cada um dos contos, que parecem compor também um livro de cenas, de ideias, de tableaux, que se iniciam, apresentam personagens e cenários bem descritos, sólidos, com potencial e depois desaparecem, elaborando uma saudade.

O cavalo nas mãos de um enxadrista a três ou quatro lances do mate fatal lembra o pai em uma transição mnemônica:

Bicho que conhece bem desde pequeno. O coice, o osso partido, o pai amarrando taliscas na perna com barbante, o calor e os arranhões na pele dolorida. — Já ouviu homem chorar?

As palavras não se repetem, a exuberância — “taliscas” — é precisa e ressoa, sem virtuosismo barato, nas palavras seguintes, “doloridas”. São contos de quem lembra — ou seja, reinventa — com a precisão das tônicas que se anunciam, das rimas que se intuem e das assonâncias — moudjahid seguido de drone — as asperezas, também, do tempo. “O chamado mistura tempos e dissolve-os para remontá-los”.

A intertextualidade generosa abre caminhos para dentro e fora dos contos. A escolha justa vem também da memória. Versos de músicas e poemas, de outras vozes, ajudam a compor a mnemônica. O que explica esse movimento de melancolia, reencanto e nova queda? As inúmeras guerras, ditaduras e torturas do século 20? O narrador que acompanha estes homens e mulheres parece um exilado, olha como um exilado, registrando tudo em detalhe, mas sem a possibilidade de apego.

Conhece a do espanhol, exilado no México? Batia com o dedo na mesa todos os dias e dizia: En la próxima Navidad vuelvo a España. O dedo encolheu de tanto bater!

São contos que se pode ler e reler, como a melhor literatura. A precisão do olhar de cada personagem nos ensina a ver novamente. São visões específicas, únicas, bem talhadas. A experiência do escritor oferece a distância apropriada, cria cenas cheias o bastante para que o leitor possa habitá-las, mas abertas o bastante para que ele também possa se mover nelas. Nisso se soluciona um pouco aquela frustração de que as histórias, muito curtas, acabam logo. Com surpresa, o leitor nota que muito mais permanece. Manoel Ricardo de Lima descreve sua poesia com palavras que explicam também estes contos e sua réstia:

O empenho de Everardo Norões é mover este quase nada, este desapercebido do poema e o desapercebido que é o próprio poema, por dentro de uma preposição ou de um lugar que pode ser o seu ou de ninguém. Entre a poeira e a réstia, entre o que sobra e o que é pedaço, entre o que é luz e sombra, num gesto muito próximo de um chiaro-oscuro, para dizer do poema como um documento humano ainda insistente.

Garrafas que sonham macacos
Everardo Norões
Cepe
134 págs
Everardo Norões
Nasceu no Crato (CE), em 1944. Exilado político, viveu na França, Argélia e Moçambique. É autor de vários livros de poesia, entre os quais A rua do padre inglês, Retábulo de Jerônimo Bosch, Poeiras na réstia. Seus poemas foram traduzidos para o francês, o espanhol, o catalão e o quíchua. Venceu o prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos), em 2014, com o livro de contos Entre moscas. Vive no Recife (PE).
Tomaz Amorim Izabel

Nasceu em Poá (SP). Graduou-se na Unicamp e fez o doutorado em Teoria Literária na USP. É autor do livro de poesia Plástico pluma (Urutau).

Rascunho