Dizer o que se quer

Poemas de Margaret Atwood são inventivos e acessíveis, sempre preocupados com a comunicação com os leitores
Margaret Atwood, autora de “Poemas tardios”
01/07/2023

Estes são poemas tardios.

O primeiro verso do livro e os seguintes, nesse poema que abre o conjunto de 57, trazem uma ideia de que também a poesia é mensagem, comunicação. Não é algo óbvio. Há quem defenda que a poesia é mais poesia quanto mais se afasta da comunicação, sendo mais expressão, impressão, peça de arte, coisa-sonho, palavras de mergulho e voo.

“Tarde demais para serem úteis”, continua esse eu-lírico. “O poema/ chega à costa como destroços flutuantes.”

A poesia não salva. Nem para isso ela presta. Será esta uma reflexão de entrelinhas aqui? Ou a tal inutilidade comunicativa é o defeito mesmo do gênero? Qual a acusação? Quem move o processo?

Curioso é que o mesmo Poemas tardios, título também do livro, termina com uma estrofe que destoa das anteriores. Abandona a metáfora da carta de marinheiro que atravessa mares, a de mensagem ineficaz e atrasada, para se acender, pronto aos aplausos de sarau, numa estrofe de tom bom-dia no whatsapp:

É tarde, muito tarde
Tarde demais para dançar.
Ainda assim, cante o que puder.
Acenda a luz: cante,
vá: encante.

Era reflexivo, questionador de si próprio e de repente iluminou-se em mensagem inspiradora. Ué, virou poema-conselho? Poema autoajuda? Tem alguma pegadinha aqui? Será que a autora plantou sarcasmo no pé do poema? Pode ser. Ou é somente o que parece, um final otimista? Só de semear essas dúvidas o poema na verdade se adianta, cumpre uma das inúmeras vocações da poesia como gênero, a de intrigar, desviar nosso olhar e pensamento, ser possibilidade em vez de resposta pronta.

O livro vai assim, entre versos muito inventivos e outros bem acessíveis, mais comunicativos e mensageiros, às vezes características que se encontram sob um mesmo título.

Reescrevi algumas vezes esta resenha. Ainda bem que você não pode ler as versões anteriores. Me peguei preconceituoso nas revisões. Preconceito contra o verso comunicativo, contra a liberdade da poeta expor seu querer dizer, que me parece errado na primeira impressão. Já tive essa mesma visão apressada contra poemas da Rupi Kaur, por exemplo. Poesia é de tantos jeitos, quem sou eu para cravar que só o que vale é a transformação radical da linguagem?

Olhar para o mundo
Margaret Atwood nada tem a provar como autora. Nada. Ela é uma gigante na literatura. Tem a liberdade de escrever como quer (se é que um dia não a teve). Seu conjunto de poemas se apresenta como expressão mesmo de sua individualidade, se seu olhar para o mundo, num certo momento da vida, conforme deixou claro na carta aos leitores que funciona como prefácio do livro:

Estes poemas foram escritos entre 2008 e 2019. Ao longo desses onze anos, as coisas se tornaram mais sombrias no mundo. E também, eu envelheci. Pessoas que me eram muito próximas morreram.

É um privilégio ter esses poemas comigo para reler. Ler é reler, já não sei mais quem criou esse dito. Poemas tardios vale releituras, e este é um elogio grande se você, como eu, dá valor ao tempo.

Poesia se faz de tantas maneiras, eu dizia. Atwood se expressa por várias delas nesse livro. A imaginação da escritora é vasta, como seu alto reconhecimento pela prosa — O conto da Aia, entre outros — já demonstra. Quem é mais o tipo de leitor do time anticomunicante na poesia vai encontrar trechos em Poemas tardios muito ricos em imagens, metáforas, hermetismo até. Quem tende mais para o tipo que gosta de poema que dá pé, vamos dizer assim, do qual se extrai mensagem, também vai achar seus tesouros.

Mas agora vou me contradizer. Ah, que maravilha é ser contraditório! Que liberdade! Há poemas de Atwood que são muito potentes justo quando ela abandona a metáfora e constrói o texto conciso sobre sua experiência. Caso de dois, especificamente (há outros):

Em Dentro:

eu segurei a sua mão e talvez
você tenha segurado a minha
enquanto a pedra do universo se fechava
à sua volta.

Mas não comigo. Eu ainda estou do lado de fora.

Em O homem invisível:

Era um problema nas histórias em quadrinhos
desenhar um homem invisível. Foi resolvido com uma linha pontilhada
que ninguém além de nós podia ver,

 […]

 É ele quem me espera:
um homem invisível
definido pelo pontilhado: 

a forma de uma ausência
em seu lugar à mesa
sentado diante de mim, comento torradas com ovos, como sempre

São imagens fortes, mais coladas à realidade, nem um pouco menos literárias que as mais fantásticas ficções ou metáforas.

Sabemos que o livro está dedicado a Graeme, marido da autora, que faleceu em 2019. Contexto faz bem à leitura.

No conjunto também destaco dois outros poemas, que são na verdade séries de poemas ou divididos em partes. Refiro-me a Canções para irmãs assassinadas e Sequência do Plasticeno. São mais engajados, com o feminismo celebrado em sua obra, de forma geral, e o alerta contra a degradação ambiental.

Bilíngue seria melhor
Procurei analisar o livro conforme ele chega aos leitores no Brasil, ou seja, em português apenas. Mas tenho estudado questões de tradução, que aprendo no meu trabalho. Então fui atrás e encontrei um dos poemas desse conjunto, em inglês, na internet. Lendo Ghost cat, percebi que há um trabalho formal que não aparece na tradução, pelo menos não neste poema, que em português ficou como Gato fantasma. É de sonoridade. Portanto o poema tem no original esse elemento que, se não é excepcional, não deixa de ser importante.

A tradutora e a equipe de edição da Rocco têm suas razões para ter deixado de lado esse traço da sonoridade, terem se mantido mais colados no original (alguma coisa sempre se perde, pois tradução não é magia). Será que somente Ghost cat tem isso?

As editoras têm muito com o que lidar, decisões a tomar, cada uma delas com consequências de toda ordem, destacadamente as financeiras. Exposta a consideração essencial, como leitor, digo sem medo que o melhor modelo para livros de poesia de autores estrangeiros é a edição bilíngue.

Poemas tardios
Margaret Atwood
Trad.: Stephanie Borges
Rocco
176 págs.
Alvos em movimento – Uma coletânea de trajetórias
Margaret Atwood
Trad.: Maira Parula
Rocco
482 págs.
Margaret Atwood
É canadense, tem 83 anos. Ganhadora do Booker Prize por duas vezes, entre outras premiações importantes. É mais famosa pela autoria de O conto da aia (Rocco, 2017), mas tem uma vasta produção: além da prosa, poesia, ensaio e livros infantis.
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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