Deve ser difícil ser escritor na Alemanha. Não que seja fácil em qualquer outro país do mundo, mas os alemães de hoje têm de carregar dois passados pesadíssimos, com influência em todo o mundo: o nazismo e os anos de comunismo, durante os quais o país estava dividido. Claro, todo país tem suas histórias nem sempre amenas, mas o nazismo e o comunismo afetaram o mundo todo. Até hoje os alemães digerem o que aconteceu naqueles tempos.
E um escritor alemão contemporâneo, que queira falar de sua gente atual, mesmo que não queira, deve trazer em seu inconsciente resquícios dessas tristes épocas. Ao mesmo tempo, por querer ser atual, ele deve lidar com todas as dificuldades hodiernas de seu país: a dificuldade em aceitar imigrantes, a difícil integração com o resto da Europa, uma economia forte, porém, vacilante, uma juventude sem emprego e sem muita esperança no futuro. Enfim, misturar tudo isso de uma maneira atraente não deve ser fácil.
E o que torna Ingo Schulze, autor de Celular — 13 histórias à moda antiga, um dos principais autores alemães da atualidade? Em primeiro lugar, Schulze está centrado principalmente em captar o que há de lírico em nosso cotidiano e ressaltá-lo em suas obras. Há um resgate da poesia que a brutalidade do dia-a-dia sufoca em seu trabalho. Assim, as suas personagens são pessoas com as quais simpatizamos, com quem temos afinidades e que, mesmo distantes, nos estão próximas, pois seus dramas são os nossos. Ao mesmo tempo, Schulze não esquece que o passado recente da Alemanha molda o comportamento de sua gente, mas não se deixa levar por sentimentos de culpa ou pela vontade de pedir perdão. Sem negar, ele não deixa que o passado guie o seu texto e as suas personagens. E isso é uma grande virtude, pois assim podemos ver os alemães pelo que eles são, e não pelo que alguns deles foram.
Em busca da origem
Nas 13 histórias narradas por Schulze, há uma espécie de modelo seguido pelo autor. Em primeiro lugar, ele coloca o protagonista em primeira pessoa narrando uma situação atual, um pensamento que ele está tendo naquele momento. Esse pensamento tem a ver com alguma situação do passado, e somos convidados a acompanhar o protagonista na viagem em busca da origem de seus pensamentos e sentimentos. Ao longo do caminho, Schulze nos põe em contato com seus dramas e suas dúvidas existenciais, que são as nossas também, e vai contando a vida como ele a viu.
Veja o exemplo do conto Milva, quando ela ainda era bem jovem. Seu início é um momento presente:
Até hoje não sei o que devo pensar sobre isso. Foi uma catástrofe? Ou uma besteira? Ou simplesmente algo pouco comum? O pior foram os minutos depois, a meia hora no carro com Harry e Reiner.
Somos apresentados a uma situação presente, algo que está acontecendo naquele instante com o protagonista. Mas logo após a apresentação, damos um salto no tempo para que ele nos conte o que aconteceu e por que aquilo ainda o incomoda. Eventualmente, o final do conto pode nos trazer novamente ao momento atual, mas não necessariamente. Em qualquer situação, a última palavra nos deixa com um leve desconforto, com uma sensação de que ainda falta algo a ser dito. O escritor parece deixar em aberto alguma coisa para que nós, leitores, completemos como bem quisermos. Este é um ponto importante e que ajuda a nos aproximar ainda mais das personagens.
No caso de Schulze, a vida comum tem, em determinados momentos, epifanias particulares que modificam a vida de suas personagens. No conto Nada de literatura ou epifania no domingo ao entardecer, por exemplo, a epifania se dá quando o protagonista do conto, um escritor em repouso no fim de semana, descobre jogada no canto do jardim em que suas filhas brincam uma casca de laranja sendo comida por formigas. O escritor e uma de suas filhas têm ali, no instante em que percebem a casca de laranja ali, um senso de conexão com o mundo. O próprio protagonista/Schulze confessa que tentar descrever o quanto um momento desses pode ser revelador é muito complicado. Mas ele tenta mesmo assim, mesmo sem argumentos. Em termos de estilo, é a descrição de um fim de semana no campo. Mas há algo que modifica a pessoa, algo que transforma e define para o resto dos tempos.
Maneira sutil
O estilo de Schulze é direto, sem floreios. Mesmo quando lida com fluxos de pensamento e sua transcrição ao papel, ele consegue ser eficiente sem parecer chato, sem parecer que está enrolando o leitor. Os detalhes, quando mencionados, são relevantes e importantes para o desenrolar da história. E é nos detalhes que Schulze mostra de maneira sutil o quanto o passado alemão assombra a vida diária, mesmo não sendo um peso carregado pelas pessoas. Assim, os personagens — até certo ponto os alter egos de Schulze — são todos escritores nascidos em Dresden, na antiga Alemanha Oriental, que reconhecem Trabants, que sabem por que havia um muro dividindo-os anteriormente, como era difícil o deslocamento para qualquer lugar, o quanto tudo mudou e até certo ponto ficou mais difícil para os alemães orientais após a reunificação, enfim, de como tudo era e não é mais.
Por fim, o escritor gosta de brincar de misturar realidade e ficção. Como explica seu tradutor, alguns dos escritores inventados para os contos de Celular trazem consigo livros escritos de verdade por Schulze. Os escritores-protagonista são todos eles nascidos em Dresden, têm aproximadamente a mesma idade do autor e participam de encontros literários reais, têm cabelos longos e duas filhas com os mesmos nomes das filhas de Schulze. Backes o relaciona a Woody Allen, que no cinema cria personagens que não se sabe se são o Allen da vida real ou de uma imaginária.
Celular traz esta aparente contradição na capa, mas ela serve como uma provocação ao leitor. O celular é uma das ferramentas mais modernas que temos para fazer o que fazemos desde o tempo das cavernas: nos comunicar com nossos semelhantes para tentar encontrar pontos de contato e conseguirmos deixar de sermos sozinhos nesse universo. A maneira antiga pode se referir ao tom de conversa empregado por Schulze, o que torna sua leitura uma descoberta de grande prazer.