Tragédia bem-humorada

Com leveza e construção perfeita, novo romance de Martha Batalha traz um personagem atormentado e o Brasil em plena ditadura
Marth Batalha, autora de “Chuva de papel” Foto: Devin Stinson
01/06/2023

Joel é um repórter aposentado, um homem cético e fracassado até quando tenta o suicídio. Este episódio inicial dá o tom tragicômico do enredo e do protagonista de Chuva de papel, novo romance de Martha Batalha. Com a ajuda de um amigo, Joel é acolhido no apartamento de uma senhora decadente como ele, num momento catastrófico: a pandemia. Sem poder sair de casa, ele recorre às lembranças para sobreviver no pequeno espaço em que fica confinado e adentra num novo universo social. Com o tempo, Joel se dá conta de que ainda é capaz de se arriscar e descobrir.

Nos dois romances anteriores, especialmente em A vida invisível de Eurídice Gusmão (2016), Martha Batalha mostrou que sabe contar uma história como poucos. Em Chuva de papel, o leitor vai comprovar o talento da escritora para conseguir prender a atenção do início ao fim do livro, sem recorrer a “truques literários” em voga. A história tem começo, meio e fim e segue uma ordem cronológica sem grandes saltos, ainda que a narrativa seja entrecortada por memórias da redação e das reportagens de rua, inclusive as publicadas na vida real, como a da mulher que morava numa árvore. Delírios, reminiscências e digressões em meio a fragmentos de cartas que não eram suas. Pelo tom espirituoso e intencionalmente dramático, seus personagens poderiam ser planos, não fosse o fato de que a humanidade é de uma complexidade infinita, e disso a autora não abre mão.

O protagonista fracassado
Joel fez uma carreira como repórter de rua e agora é um homem solitário, velho e incrédulo, que só “acredita em bife a cavalo e contas pagas”, muito embora, ao longo da vida, tenha sido capaz de admirar e de se apaixonar por mulheres imperfeitas. Um repórter à moda antiga, que começou a carreira em um jornal no Rio de Janeiro há cinquenta anos e que já era repleto de problemas nunca resolvidos. Joel sempre trabalhou em jornais ávidos para explorar a tragédia humana tal como a mídia faz ainda hoje. Sua vida não tinha nada de óbvio, quer se tratasse de empregos, casamentos (Eliane, Regina, Matilde, Cristina, Solange, Beatriz, etc.), filhos, amantes, amigos. Joel era “capaz de dar a um bolinho massudo o gosto singular de um passado intricado”.

O início de sua carreira jornalística foi como foca do jornal Luta Democrática e depois, nos anos 70, tornou-se repórter no Jornal do Brasil. Mas os encontros no bar após o fechamento da redação era o que Joel mais gostava, ou então ir para a rua e ver a coisa toda acontecendo, e ele se metendo ali no meio, recebendo respostas a tudo o que quisesse saber, ainda que restassem poucos minutos de vida para o entrevistado. Joel era capaz de registrar detalhes íntimos da decadência humana.

O suicídio, que Joel levou um bom tempo planejando, foi impedido por uma Kombi estacionada na frente do prédio que escolheu para se jogar. O proprietário da perua não se cansará de correr atrás dele para cobrar o conserto na lataria que Joel nunca terá como pagar. Socorrido, passou vários dias hospitalizado e, um pouco antes de receber alta, a enfermeira responsável pediu para trocar de paciente porque não aguentava mais tanta conversa mole e safadeza.

A outra enfermeira despejou a notícia como bofetada, sem nenhum afago linguístico que abrandasse o abandono.

Esta frase ilustra o poder de concisão da escrita da autora. Martha Batalha, que já foi jornalista, faz uso da sua própria vivência e da experiência de outros jornalistas para compor o roteiro e as histórias sobre o que significava ser repórter naquela época, como funcionava a redação de um jornal, como distorcer os fatos para escrever uma boa matéria, como era a definição e o fechamento da pauta na busca e seleção de um título apelativo, exagerado, mas capaz de vender jornal.

Um outro mundo
Graças a um ex-colega de redação, assim que deixou o hospital, Joel foi morar de favor no apartamento de uma senhora. Joel não entendia o porquê de tanta generosidade, até o ex-colega explicar que era apenas uma retribuição à ajuda que havia recebido. Joel não se lembrava, não era um homem afeito a recordações afetuosas, medalhas de solidariedade no peito.

O apartamento, no bairro da Tijuca, já havia sido sofisticado, com carpas e vitória régias no pequeno lago de água da entrada. Com mobiliário gasto e tapeçaria puída, tudo no apartamento combinava com o tempo em que a geladeira ainda precisava ser descongelada.

Os diálogos, verossímeis e potentes, não são substituídos pelo discurso indireto livre. As pessoas conversam de verdade, cada um com a sua dicção, seu repertório e seu jeito de falar. Este é outro ponto alto da linguagem do romance. Uma das personagens diz que estava aprendendo a falar como os cariocas: “tom elevado, belicoso, com energia intensa e fugaz e uma lógica de fogo de palha, que se acendia e queimava em cada frase”.

Assim como o apartamento e os diálogos, tudo é particularizado, único e, ao mesmo tempo, trágico e bem-humorado. O mesmo se dá com os personagens. O confinamento forçado pela pandemia tira Joel das ruas e o obriga a dividir todo espaço físico e social com uma mulher desconhecida, Glória, e a vizinha Janete, cujos chihuahuas não paravam de latir. Os pertences e as histórias sobre a ausente e misteriosa Cláudia, filha de Glória, atiçam a veia de repórter de Joel, assim como a vida da própria Glória, “a aeromoça que nunca decolou”.

O tom trágico do livro combina com a decadência generalizada. É tocante o episódio triste e terno em que o menino de rua, Totó, que colaborava com Joel passando informações, depois de engravidar a menina que amava, foi recolhido das ruas, rendido como um animalzinho, por causa de uma reportagem da qual Joel se arrependerá de ter escrito.

Declínio contínuo
Em 2 de abril de 1964, ou seja, no dia seguinte ao golpe militar, o jornal O Dia publicou em suas páginas:

A população de Copacabana saiu às ruas, um verdadeiro Carnaval, saudando as tropas do Exército. Chuvas de papéis picados caíam das janelas dos edifícios enquanto o povo dava vazão, nas ruas, ao seu contentamento.

O proprietário deste jornal era um político antigo, Chagas Freitas. Inicialmente ademarista, aderiu prontamente aos militares, e foi nomeado duas vezes governador (1971 a 1975; 1979 a 1983). Este é o contexto em que se dá o auge de carreira de Joel numa cidade já decadente, com esquadrão da morte, ditadura miliar e jornais adesistas e manipuladores. Mas a chuva de papel aludida no livro é outra. É o ritual da redação para celebrar o fim de ano jogando pela janela recortes de jornal.

A cidade ainda era bonita, e no Brasil ainda se vendiam jornais com artifícios muito semelhantes àqueles utilizados atualmente pela mídia. Nesse sentido, o livro expõe, de um lado, o conluio, os interesses entrelaçados embora nunca assumidos, entre a política e a imprensa. E de outro, a manipulação e a crescente falta de compromisso entre os fatos e o conteúdo publicado nos jornais com o simples propósito mercadológico.

Chuva de papel
Martha Batalha
Companhia das Letras
222 págs.
Martha Batalha
Nasceu no Recife (PE) e cresceu no Rio de Janeiro (RJ). Estudou jornalismo e fez mestrado em literatura brasileira na PUC do Rio e em editoração na Universidade de Nova York. Foi repórter nos jornais O Dia, O Globo e Extra. Trabalhou no mercado editorial norte-americano até optar pela carreira de escritora. Seu primeiro romance, A vida invisível de Eurídice Gusmão (2016), foi publicado em diversos países e transformado em filme. Em seguida, publicou Nunca houve um castelo (2018). Chuva de papel é seu terceiro romance. Atualmente, é colunista de O Globo e vive na Califórnia (EUA).
Ana Cristina Braga Martes

É socióloga e escritora. Autora de A origem da água.

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