Júlia (1)

Júlia Lopes de Almeida é um exemplo clássico de uma grande autora que a crítica literária simplesmente ignora
01/10/2008

O maior ensinamento que talvez possamos extrair das pesquisas em Física seja o de desmontar, ao longo dos séculos, a noção de “verdade absoluta”. A cada novo avanço que esse ramo do conhecimento traz a respeito da constituição do Universo e das leis que o regem, caem por terra “afirmações definitivas” e surgem novas teorias provisórias que, futuramente, poderão ser também rechaçadas. Se isso ocorre no âmbito de uma ciência denominada “exata”, a tendência é a de que pensássemos que, no campo em que ela não o é, ou seja, onde depende exclusivamente da falibilidade do julgamento humano, deveria haver revisões periódicas das proposições dadas como “certezas”. Não é, entretanto, o que ocorre. Tomemos, por exemplo, o cânone literário. Imersos numa discussão que inclui valores atrelados ao poder acadêmico, e que não podem ser aferidos experimentalmente, os especialistas e críticos costumam contribuir para cristalizar argumentos e subscrever apreciações, seja por sujeição a interesses de grupos, seja por mera ignorância. Daí a rara prática do reexame de autores e obras — e a imposição de uma leitura exclusivista e interessada da história literária, que ocasiona injustiças gritantes e supervalorizações obscuras.

Um dos casos mais graves de omissão da ensaística brasileira, na minha opinião, é o da escritora Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), a quem já tive ocasião de me referir aqui neste espaço. Seu nome não consta da História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi[1], um dos maiores sucessos editoriais junto ao público universitário; nem da História da literatura brasileira em cinco volumes, de Massaud Moisés[2]; nem dos seis volumes de A literatura brasileira, de vários autores[3]; tampouco a encontramos na extensíssima A literatura no Brasil, seis volumes dirigidos por Afrânio Coutinho e Eduardo Faria de Coutinho[4]; nem nos dois tomos de A literatura brasileira origens e unidade, de José Aderaldo Castello[5]. Vamos nos deparar com a autora em História da inteligência brasileira, de Wilson Martins[6], e em História da literatura brasileira prosa de ficção — de 1870 a 1920, da sempre magistral Lúcia Miguel Pereira[7], ambos comentadores entusiasmados de sua obra, como observaremos à frente.

Antes, porém, apresentemos a escritora. Nascida na cidade do Rio de Janeiro em 1862, filha de portugueses emigrados, cultos e ricos — o pai, médico e educador, foi dono de um colégio de humanidades —, Júlia Lopes de Almeida teve uma educação sofisticada e liberal, completamente discrepante para os padrões femininos da época. Dos sete aos 23 anos, mora numa fazenda com a família, em Campinas (SP), onde, incentivada pelo pai, publica suas primeiras crônicas no jornal local. Em 1886 a família parte para Lisboa, cidade na qual Júlia permanece até 1888, quando, casada com o poeta português Filinto de Almeida (1857-1945), retorna ao Brasil. Durante todo esse período mantém colaborações em jornais e almanaques, tanto portugueses quanto brasileiros. É ainda em Portugal que se dá sua estréia em livro, os contos de Traços e iluminuras[8], publicado por contra própria em 1887. No ano seguinte, no Rio de Janeiro, sai em folhetins seu primeiro romance, Memórias de Marta[9], lançado em livro em 1899[10], em São Paulo, onde o casal mora por quatro anos, devido às atividades jornalísticas do marido. Em 1904 começam as obras de um casarão no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde manterão o “Salão Verde”, espaço freqüentado por artistas, intelectuais e jornalistas durante 21 anos. Neste meio tempo, passa 1913 e 1914 na Europa, faz uma longa viagem pelo sul do país em 1918 e para Buenos Aires em 1922. A partir de 1925, a família fixa residência por seis anos em Paris. Em 1934, oito dias após uma viagem à África, morre, no Rio de Janeiro, vítima da malária, aos 72 anos.

Cogitada para a ABL
A crer nos depoimentos de seus contemporâneos, Júlia Lopes de Almeida foi bastante conhecida em sua época, tendo sido até mesmo cogitada para participar da lista inicial de fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL). Segundo Raymundo Magalhães Junior (1907-1981), o escritor Lúcio de Mendonça (1854-1909), fundador da cadeira número 11 da ABL, escreveu um artigo no jornal O Estado de S. Paulo anunciando uma reunião que definiria os nomes dos 40 imortais: “Sem me responsabilizar pela exatidão absoluta, pois uma ou outra modificação pode ocorrer afinal, penso, entretanto, sem perigo de muitos enganos, comunicar-lhes, como interessante primícia, a seguinte lista, por ordem alfabética dos nomes que sairão os dos 40 membros efetivos da Academia Brasileira de Letras do Rio de Janeiro”[11]. Magalhães Junior comenta: “Era mencionada a escritora Julia Lopes de Almeida, mas não havia nenhuma menção a seu marido, Filinto de Almeida (…). Por modéstia e devoção conjugal, ela preferiu vê-lo eleito, em seu lugar”[12]. A mesma impressão causada pela “modéstia e devoção conjugal” de Júlia pode ter influenciado o escritor e jornalista João do Rio (1881-1921) a intitular o capítulo referente à sua entrevista com a escritora, publicada no importantíssimo inquérito O momento literário, como Um lar de artistas[13] — os outros capítulos são encabeçados pelo nome do entrevistado, todos homens…

Lúcia Miguel-Pereira afirma que Júlia Lopes de Almeida “é a maior figura entre as mulheres escritoras de sua época, não só pela extensão da obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida literária de mais de quarenta anos, como pelo êxito que conseguiu, com os críticos e com o público; todos os seus livros foram elogiados e reeditados, vários traduzidos, sendo que se consumiu em três meses a primeira tiragem da Família Medeiros”[14]. Esse entusiasmo da ensaísta com relação ao êxito junto à crítica e ao público da obra de Júlia talvez deva ser relativizado. Autora de dez romances[15], três coletâneas de contos e novelas, três compilações de crônicas, quatro peças de teatro, três seleções de contos infantis e seis livros diversos, entre relatos de viagem e conferências, pode-se falar, sem dúvida, no caso dela, em “extensão da obra”[16]. Em vida, no entanto, viu reeditados, e apenas uma vez, os romances Memórias de Marta, A intrusa e Cruel amor e o livro de contos Ânsia eterna[17]. Sucesso alcançou foi com livros que hoje denominamos paradidáticos: Contos infantis (1886), lançado em parceria com sua irmã, Adelina Lopes Vieira (1850-??), é adotado, a partir de 1891, em todas as escolas primárias do Brasil durante mais de vinte anos[18]; e Histórias da nossa terra, também de contos infantis, teve vinte e uma edições entre 1907 e 1930[19]. Traduções, a obra de Júlia conheceu poucas: os contos As rosas (Les Roses) no Paris Journal de 16 de fevereiro de 1914; A caolha (La Tuerta), no jornal La Nación, de Buenos Aires, em 22 de outubro de 1922; Os porcos (Les Porcs), no Tomo XVII, nº 28 da Revue de L’Amérique Latine, de Paris, em março de 1929; e os romances Memórias de Marta e A família Medeiros no volume único Deux Nouvelles Brésiliennes (Trad. Jean Duriau. Dunkerque: Imprimierie Du Commerce – G. Guibert, 1928).

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Notas

[1] São Paulo: Cultrix, 2001 (39ª edição).

[2] São Paulo: Cultrix, 1989 (2ª edição).

[3] São Paulo: Cultrix, 1968 (3ª edição).

[4] Rio de Janeiro/Niterói: José Olympio Editora/Universidade Federal Fluminense, 1986 (3ª edição, revista e atualizada).

[5] São Paulo: Edusp, 1999.

[6] São Paulo: T.A. Queiroz, 1996 (2ª edição).

[7] Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio Editora/INL, 1973 (3ª edição).

[8] Lisboa: Tipografia Castro & Irmão, 1897.

[9] Publicado no jornal Tribuna Liberal, do Rio de Janeiro, entre 03 de dezembro de 1888 a 17 de janeiro de 1889, segundo SALOMONI, Rosane Saint-Denis. In: ALMEIDA, Júlia Lopes de. Memórias de Marta. 3ª edição. Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 2007. Curiosamente, essa informação não consta do exaustivo levantamento de TINHORÃO, José Ramos. Os romances em folhetins no Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1994.

[10] A edição em livro saiu pela Casa Durski, de Sorocaba, em 1899. Houve uma segunda edição pela Livraria Francesa e Estrangeira Truchy -Leroy, de Paris, em 1930. V. obra citada.

[11] Vida e Obra de Machado de Assis. Volume 3 (Maturidade). Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL-MEC, 1981 (p. 287)

[12]Idem. (p. 287-288)

[13] As reportagens foram publicadas originalmente nas páginas do jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, entre 1904 e 1905, e reunidas em livro em 1907, numa edição da Livraria Garnier. V. RIO, João do. O Momento Literário. Org. Rosa Gens. 2ª edição. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1994.

[14] Op. Cit., pág. 270.

[15] Um deles, A Casa Verde, publicado em colaboração com o marido, Filinto de Almeida, em folhetins no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, entre 18 de dezembro de 1898 e 16 de março de 1899, sob o pseudônimo comum A. Julinto e lançado em livro em 1932 pela Companhia Editora Nacional.

[16] TINHORÃO cita ainda um folhetim, O caso de Ruth, publicado no Almanaque da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1897 (Cf. op. Cit, pág. 79), mas que, na verdade, é um conto incluído na 2ª edição de Ânsia Eterna.

[17] À primeira edição (Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903) seguiu-se outra, “nova edição, refundida pela autora”, lançada postumamente (Rio de Janeiro: A Noite, 1938).

[18] Cf. SALOMONI, Rosane Saint-Denis. In: ALMEIDA, Júlia Lopes de. Memórias de Marta. 3ª edição. Florianópolis/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/Edunisc, 2007 (p. 22)

[19] Idem, p. 34

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho