Ao lado de Pessoa

À sombra da biografia do autor, obra de Sá-Carneiro pede uma nova leitura
Mário de Sá-Carneiro, autor de “Melhores poemas”
01/05/2012

1.
Mário de Sá-Carneiro foi não só contemporâneo como também amigo de Fernando Pessoa. Isso é o que em primeiro lugar deve ser relembrado, precisamente devido à função determinante que teve o fato na recepção crítica de tudo o que escreveu o autor de Dispersão. Sá-Carneiro teve lá sua importância, parecem dizer alguns — para logo acrescentarem, como se inevitável fosse: embora não o valor de um Fernando Pessoa. Como se este sempre servisse como uma espécie de parâmetro para a avaliação daquele; como se fosse imprescindível redimensionar a obra de Sá-Carneiro, a fim de demonstrar que, por mais valiosa que seja, não pode ombrear com a do autor de Mensagem. E mais: Fernando Pessoa é por vezes visto como uma espécie de avalista de Sá-Carneiro, ainda que para tanto tenha contado o beneplácito da amizade. E, por conta disso, o autor de Indícios de oiro continua a ser subestimado, mesmo por muitos daqueles que o apreciam.

Prova do que vem sendo dito é o fato de que aquilo que hoje se costuma evitar, quando se avalia a obra de Pessoa, permanece sendo insistentemente levado em conta quando o objeto de estudo é a poesia de Sá-Carneiro: a sobrevalorização de elementos de cunho biográfico. Se a obra de Pessoa já pode ser lida apenas a partir do que apresenta como qualidade estética, com a eventual evocação de aspectos relacionados à sua vida nos casos em que isso é efetivamente relevante ou incontornável, as leituras de Sá-Carneiro muitas vezes se revelam devedoras de um olhar que mais visa ao homem (seja lá o que se crê que tenha sido o homem) que à obra.

Narcisista, desajustado e conflituoso, Sá-Carneiro produziu uma poesia que, essencialmente, manifesta os tumultos de sua vida interior, culminando espetacularmente no gesto suicida. Para os que insistem nesse protocolo de leitura, de certo modo o enfoque foi já concedido pelo próprio Pessoa: “Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe”, escreveu em texto publicado na revista Athena, oito anos após a morte do amigo. Trata-se de um texto, de fato, imprescindível para a leitura da poesia de Sá-Carneiro — desde que a partir dele se considere como o autor de Manucure construiu uma poética de si, consoante as expectativas da época, e como isso foi acolhido por seus coevos. Não obstante, ainda se insiste em ler a obra de Sá-Carneiro como um corpus sintomatológico — o que, inevitavelmente, desloca a literatura para um plano inferior.

2.
O volume dedicado a Mário de Sá-Carneiro na valiosíssima coleção Melhores poemas, publicada pela Global (que, sempre vale reiterar, está entre as editoras brasileiras que de modo mais constante e consistente vêm prestigiando a poesia, tanto através da referida coleção quanto por meio da importantíssima antologia Roteiro da poesia brasileira), foi organizado por Lucila Nogueira, de larga trajetória no mundo literário — como escritora diversas vezes premiada — e no acadêmico — como professora da Universidade Federal de Pernambuco. Compõem o livro um provocador texto introdutório (de que trataremos mais à frente); uma alentada cronologia, apresentada como Tábua biográfica, assinada por Fernando Pessoa; a Tábua bibliográfica de Mário de Sá-Carneiro, publicada pelos editores de Indícios de oiro (não constam do livro algumas informações relevantes: essa “tábua” foi transcrita pelos editores do décimo sexto número da revista Presença, de novembro de 1928, onde fora publicada anonimamente; são os mencionados editores os responsáveis por identificar a autoria de Pessoa); e uma detalhada “Fortuna crítica” (embora dela esteja ausente pelo menos um livro de publicação recente: O imaginário sexual na obra de Mário de Sá-Carneiro, de Fátima Inácio Gomes, publicado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda em 2006); além dos “melhores poemas” propriamente ditos.

No que diz respeito à antologia, o estabelecimento de um critério a partir do qual se possa adotar uma postura crítica é dificultado pela própria proposta do volume, uma vez que a escolha dos “melhores poemas” de um autor sempre será, inevitavelmente, realizada a partir de juízos subjetivos. O que se pode observar é que constam do volume os principais poemas de Sá-Carneiro; de modo que, se é válido o pressuposto de que a coleção da Global pretende fornecer aos leitores uma apresentação da poesia do autor, a tarefa é plenamente cumprida. O ponto a se lamentar são os vários problemas de edição. Em diversos poemas, o uso de iniciais maiúsculas por Sá-Carneiro não é preservado, o que prejudica a sua apreciação literária. Em Estátua falsa, ocorre “tempo” em vez de “templo”, no penúltimo verso (“Sou templo prestes a ruir sem deus”); Manucure apresenta problemas sérios: omite-se a seqüência na vertical que abre o trecho que se segue ao verso “Assunção da beleza numérica!”; entre mais equívocos, na passagem em que se apresentam as tabuletas, lê-se “Pastilles Volda” onde deveria constar “Pastilles Valda” e “Joseph Paquer, Bertholle F C” onde deveria estar “Joseph Paquin, Bertholle & Cie”; em outro trecho, lemos “Álvaro Campos” em vez de “Álvaro de Campos”.

O estudo introdutório de Lucila Nogueira manifesta a provocativa intenção de investir contra “a violência na mumificação oficial de personalidades radicalmente transgressoras que a consagração canônica transforma em espantalhos tanto dos leitores como de si mesmos”. Com o nítido fim de propiciar aproximações que revelem o caráter sui generis da poética de Sá-Carneiro (o que não deixa de investir contra as leituras que acabam por subestimá-lo, conforme o que mencionamos no início desta recensão), Lucila tanto vê na obra do autor uma aproximação da poética surrealista quanto a antecipação de “relações radicalizadas de imagens” que, a seu ver, podem ser aproximadas das “viagens psicodélicas” de uma banda como Pink Floyd, já nos anos 1970. Concorde-se ou não com a ousada apreciação de Lucila, cabe ressaltar que, com efeito, é de fundamental importância o singular modo como Sá-Carneiro articula a fragmentação da subjetividade com agenciamentos de imagens e sugestões sensoriais, estando em seu uso desses procedimentos literários porventura o maior valor de sua produção poética. A esse respeito, vale lembrar que, no mesmo terceiro poema das Sete canções de declínio em que o poeta escreveu “Não me embaraço em prisões!”, está este outro verso, verdadeira clave para a compreensão da poética de Sá-Carneiro: “Só as Cores são verdadeiras”.

Melhores poemas
Mário de Sá-Carneiro
Org.: Lucila Nogueira Rodrigues
Global
216 págs.
Mário de Sá-Carneiro
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) foi um dos maiores nomes do Modernismo português. Com Fernando Pessoa, Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho, entre outros, fundou a revista Orpheu, cujos dois números, publicados em 1915, representariam “a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos”, segundo Pessoa. Suicidou-se em 1916, em Paris.
Henrique Marques Samyn

É professor de literatura e escritor. Autor de Uma temporada no inferno e Levante.

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