H. P. Lovecraft é, sem dúvida, um dos mais cultuados escritores de literatura fantástica do século 20. Menções a sua obra podem ser encontradas em histórias em quadrinhos, RPGs, letras de músicas, filmes, romances e contos dos mais variados. Há quem diga, por exemplo, que o livro dos mortos evocado no clássico trash de Sam Raimi, Evil dead (1981), não é outro senão o Necronomicon, obra antiqüíssima pela qual mais de um personagem de Lovecraft já encontrou a perdição. Há quem diga também que o melhor conto lovecraftiano jamais escrito é There are more things, de Jorge Luis Borges, presente em O homem de areia. A se pensar. De qualquer modo, mesmo os críticos mais ferrenhos de Lovecraft devem concordar que sua influência no imaginário popular do século 20 é incontornável.
Nascido em 1890, o norte-americano H. P. Lovecraft é em muitos sentidos um escritor anacrônico. Em um período em que, segundo os manuais de literatura fantástica, os contos sobrenaturais do século 19 já haviam sido superados pelos terrores mais realistas da psicanálise, e em que Franz Kafka estaria criando seus mais sombrios pesadelos, a ficção de Lovecraft insistia no sobrenatural e, mais especificamente, no conto de terror. Seus livros estão repletos de personagens insanos em busca de mistérios ancestrais e seres monstruosos; seu estilo possui um tom grandiloqüente quase caricatural em sua adjetivação excessiva e na grandiosidade sinistra de algumas cenas, quase épicas. Mas, apesar dos excessos (ou talvez, em parte, um pouco por causa deles), seus melhores contos conseguem de fato criar uma atmosfera sinistra bastante singular, verossímeis porque narrados por seres perturbados à beira da loucura, e adequados à grandiosidade de seus temas, como a mitologia criada em torno de Cthulhu e outras criaturas fantásticas.
Agora, o público brasileiro, que vem acompanhando a publicação regular das obras de Lovecraft pela editora Iluminuras — sempre com a tradução de Celso M. Paciornik — tem a chance de ler o ensaio O horror sobrenatural em literatura, em que Lovecraft faz uma pequena história de seu gênero literário de eleição. O ensaio foi escrito em 1927, mas publicado apenas em 1945 (vale dizer que já houve pelo menos uma edição anterior deste livro no Brasil, publicada pela Francisco Alves em 1987, mas que muito dificilmente pode ser encontrada hoje, mesmo em sebos). Longe da imparcialidade dos manuais acadêmicos, Lovecraft traça um panorama dos autores e dos estilos de sua predileção, indicando acertos e condenando fracassos de seus predecessores. O início do livro é célebre:
A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o tipo de medo mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido. Poucos psicólogos contestarão esses fatos e sua reconhecida verdade deve estabelecer, para todos os tempos, a autenticidade e dignidade da ficção fantástica de horror como forma literária.
Como não podia deixar de ser, o autor de clássicos do terror como A cor que caiu do céu valoriza sobretudo a capacidade que os textos literários possuem de provocar medo em seus leitores. Ou melhor, atingir os temores mais primitivos do homem, ou o que ele chama de “macabro espectral” ou “medo cósmico”.
Tzvetan Todorov — autor da célebre Introdução à literatura fantástica — foi um dos muitos teóricos que criticaram Lovecraft por basear sua teoria do fantástico no efeito que o texto exerce sobre o leitor. De fato: a reação real dos leitores (grupo dos mais variáveis, que pode incluir pessoas mais ou menos impressionáveis, mais ou menos inclinadas a compartilhar as crenças de um texto) é um elemento por demais imponderável para servir de critério de avaliação de um texto literário.
Mas Lovecraft é um escritor, não um teórico. Seu ensaio carece de categorias objetivas que norteiem seu julgamento; entregue à impressão que os textos lhe provocam, o autor é capaz de valorizar um romance por ter alcançado “alturas de puro pavor espiritual” (Melmoth, o errante, de Charles Maturin), ou de condenar um autor por ter muito “do professor consciente e do homem prosaico para criar uma verdadeira obra-prima do terror” (William Godwin, pai de Mary Shelley).
Como se vê, o ensaio mantém o tom grandiloqüente de seus contos, assim como a adjetivação excessiva. Um bom exemplo é o perfil de Nathaniel Hawthorne, traçado em poucas linhas. Homem “recatado e sensível”, foi “outro ilustre, incompreendido e solitário símbolo das letras norte-americanas”, em cuja obra
Não temos nada da violência, da audácia, da fina ornamentação, do intenso sentido dramático, da maldade cósmica e do talento artístico indiviso e impessoal de Poe. Nele encontramos uma alma dócil refreada pelo puritanismo dos primeiros tempos da Nova Inglaterra, meditativa e tristonha, e mortificada por um universo amoral que, por toda parte, transcende aos padrões de pensamento convencionais de nossos antepassados para representar uma lei divina e imutável.
Embora subjetivo na análise dos textos, Lovecraft faz um percurso histórico bastante abrangente, descrevendo os primórdios, o apogeu e os desdobramentos da ficção gótica (estilo que o autor reconhece interessante, apesar da má qualidade da maioria de seus textos), o desenvolvimento da “literatura espectral” na Europa e a consolidação da literatura fantástica nos Estados Unidos e nas Ilhas Britânicas. Há, claro, algumas injustiças flagrantes neste percurso, como o pouco espaço concedido ao mestre E. T. A. Hoffmann; mas suas escolhas e ênfases podem nos dizer muito sobre as prioridades artísticas de Lovecraft.
Edgar Allan Poe, por exemplo, é o personagem mais importante do volume, merecedor de um capítulo exclusivo. O principal mérito do autor de A narrativa de Arthur Gordon Pym teria sido o de estabelecer um novo patamar de realismo dentro das narrativas fantásticas. O paradoxo é apenas aparente: longe dos lugares-comuns da narrativa gótica, Poe desenvolveu como ninguém antes dele a psicologia dos personagens, trabalhando “com um conhecimento analítico das verdadeiras fontes do terror que duplicava a força de suas narrativas e o emancipava de todos os absurdos inerentes à mera produção convencional de sustos”.
É recorrente, no ensaio de Lovecraft, o argumento de qualidade segundo o qual apenas mentes singulares como as de Poe estariam potencialmente capacitadas a revelar o “verdadeiro” ou o “autêntico” medo em suas obras. É dito assim, sem uma análise textual mais detida, que Lovecraft faz um elogio às personalidades propensas ao sobrenatural, sejam elas de autores ou de escritores, porque “são relativamente poucos os que se libertam o suficiente do feitiço da rotina diária para responder aos apelos de fora”, ou seja, ao restrito “apelo do macabro espectral”. Os artistas menos privilegiados nesta capacidade, como Balzac e Victor Hugo, por exemplo, e apesar de terem escrito algumas boas narrativas fantásticas, carecem da “intensidade sincera e demoníaca que caracteriza o artista nato do sobrenatural”.
Trata-se da construção de uma mitologia bastante romântica em torno de certos escritores, um pouco fantásticos como suas obras. Vale lembrar que a vida do próprio Lovecraft é cercada por alguns mistérios, mais fictícios do que reais, e sua personalidade excêntrica é objeto de interesse e especulações por parte de uma boa parcela de fãs. Mas independentemente de sua estranheza pessoal, é indiscutível que o autor cultivava, também em textos como neste O horror sobrenatural em literatura, uma imagem bastante adequada a sua produção artística. E pouco importa se H. P. Lovecraft era de fato um crente do ocultismo ou apenas um cético fantasista. Mais importante para a compreensão de sua obra é certa imagem do “autor implícito”, construída nas entrelinhas de seus julgamentos estéticos e de suas histórias de terror.
Tudo isso, porém, mostra que o verdadeiro valor de O horror sobrenatural em literatura está no diálogo que estabelece com uma obra literária não mencionada no ensaio, a do próprio Lovecraft. No prefácio à edição brasileira, Oscar Cesarotto afirma, muito acertadamente, que Lovecraft confirma “aquilo que Borges dissera sobre Kafka: cada escritor cria retroativamente seus antecessores”; assim, “quem redige a história sabe que também faz parte da História”. Ainda que não cite sua própria obra, Lovecraft está, através da eleição de seus precursores, inserindo-a dentro da “linhagem de verdadeiros artistas que começa com Poe”.
O livro termina por cumprir seu papel essencial, o de descrever uma linhagem de textos fantásticos que o leitor interessado no tema não se arrependerá em descobrir. Mas O horror sobrenatural em literatura é importante principalmente para se conhecer um pouco do delírio criativo do artista irregular — mas imprescindível para a literatura fantástica — que foi H. P. Lovecraft.