Sobressaltos do viver

“Carta a D.”, de André Gorz, é uma agônica declaração de amor pouco antes do suicídio
André Gorz, autor de “Carta a D. — História de um amor”
01/11/2008

“Se eu morrer agora, você retornará ao Rio de Janeiro?” Mal tínhamos acordado e minha mulher, após um beijo, traz à tona essa questão. Como se trata de uma quase filósofa e a morte é a grande inspiradora da filosofia, a princípio tomei aquela indagação como provocação. Ela sabe o estrago que me faz falar e pensar na morte, e também uma tentativa de filosofar. A questão precisava ser quase simplória devido às limitações do seu patético interlocutor. Fosse o que fosse, não teve êxito. O medo que o tema me causa, o medo da morte é inato, empurrou minhas mãos trêmulas ao controle remoto e logo liguei a TV em busca de uma bobagem qualquer.

Ela não insistiu e eu num silêncio-trincheira inventado naquele instante lembrava do melancólico livro Carta a D., que tínhamos lido e debatido semanas antes, sob coincidentes emoções.

A morte não combina com nada, e, quando confrontada com o amor, a incompatibilidade se torna insuperável. Por ter experimentado de ambos, meus medos se redobravam. Após a pergunta de minha mulher, perseguiu-me por horas e horas uma frase de Carta a D.:“Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro”.

Impactado com a frase, conclui que deve ser essa a única maneira de um amor durar para sempre. Amor ou vontade de vida, conforme Schopenhauer.

Mas “como construir esse para sempre”? Partindo da certeza do meu amor por minha mulher e das sensações incomparáveis que ela me causa, tornava-se óbvio objetivar a continuidade do prazer. Sei que no frigir dos ovos, somos todos egoístas e tudo que buscamos é com a intenção de que seja para sempre. Que o automóvel não enferruje, que o vaso jamais quebre, que as fotografias nunca se apaguem e aqueles que amamos estejam sempre a nossa disposição. Poucos admitem, mas a verdade é essa. Esse mundo não me interessa,o mundo da razão, razão que nos presenteou com a certeza da morte, me desagrada completamente.

Por outro lado, fascina-me o mundo da minha imaginação. Sua existência depende de mim, se tenho os planos é porque a construção é viável. Meu objetivo é trapacear, enganar a morte, desviá-la daqueles que eu quero bem, que na verdade guardam pedaços meus e caso morram, eu também morro. Se a fantasia não me impediu de sofrer, pelo menos me fez entender que algumas coisas podem ser para sempre. E só pode ser para sempre tudo aquilo que não exigir espaço. Mas o para sempre é algo que não surge livre da dor. Falo de meu grande amor que foi precedido da minha dor e solidão, frutos ácidos da autodepreciação e preguiça de acreditar na fantasia. A solidão é um artifício muito utilizado pelos covardes da minha laia. Nos escondemos, congelamos nossa afetividade e, se não amamos, não corremos o risco da rejeição, da perda, da frustração. E assim permitimos o tempo andar sobre nós. Até um dia… O dia em que percebemos que podemos permanecer assim para sempre. Sem dor, sem medo, imóveis. Como as pedras. A pedra escondida é a materialização do para sempre, pior, muito pior que estátua. Minha fantasia exigia movimento e eu não sabia, talvez por isso me doesse tanto estar parado. Pouco importando se frente ao mar ou deserto.

Avisem a polícia
Porém, em certo entardecer meu mundo começou a rodar no sentido oposto. Naquele instante eu vi a mulher que também me viu. Alguns dias se sucederam até revê-la e então trocamos algumas palavras, o suficiente para eu me dar conta de que desde minha infância sonhava com uma mulher como aquela. Hoje, o sonho é também meu despertar e quando sofro é simplesmente porque ela não está comigo. E como sofro! Infelizmente, o amor nunca é para sempre, visto que é vivo e tudo que é vivo precisa morrer. Não, eu não invejo o amor de Dorine e André, mesmo que o amor deles tenha durado para sempre. Agora eu tenho a receita e posso responder a minha mulher: “Não, quando você morrer não voltarei ao Rio de Janeiro. Não irei a lugar algum. Pregarei na porta de nossa casa placa igual a de Gorz: Avisem a polícia”. É isso. Não eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e não acredito em nada, nada mesmo que não seja produto da fantasia, do imaginado, do sonhado. Mas acreditar não basta é preciso viver a realidade com fantasia.

Amor ou vontade de vida. Em setembro de 2007, Dorine e Gorz suicidaram-se, cada um com sua respectiva injeção letal. A doença dela (aracnoidite) atrapalhava a vontade de vida do casal. Viveram juntos quase sessenta anos. Dorine sofria havia vários anos de uma doença incurável, fruto de um erro médico — “você vai eliminar esse produto em dez dias”, anunciou o radiologista. Enganava-se: o líquido (lipiodol), utilizado para fazer contraste numa radiografia de coluna, alcançou o cérebro. Dorine sofria dores terríveis.

Carta a D., escrito entre março e junho de 2006 com Dorine já doente, é uma carta de amor, é uma história de amor, é uma história sobre os sobressaltos do viver? É uma história sobre a literatura, sobre o silêncio? É tudo isso e mais: é também o mea-culpa, pedido de perdão, remorso de Gorz. Logo na abertura ele confessa:

Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que, não faz muito tempo, têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida? Por que, em Le Traîte, passei uma falsa imagem de você, que a desfigura? Esse livro deveria mostrar que a minha relação com você foi a reviravolta decisiva que me permitiu desejar viver. Por que, então, deixar de fora essa maravilhosa história de amor que nós tínhamos começado a viver sete anos antes?

Em Le Traîte, chega ao requinte de chamá-la de “coitadinha”. Tem mais: Carta a D. também é o relato de uma tragédia provocada por um erro médico, enquanto isso a vida segue abusando das repetições. André e Dorine não suportaram, não importa se para os gatos ou para os médicos, ambos escondendo suas cagadas embaixo da terra. Falo com conhecimento de causa, já me pegaram duas vezes, fizeram uma vítima fatal. Carta a D. é uma pergunta; a pergunta que incomodava Gorz: “por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa e excluímos as demais?” A pergunta continua à espera da resposta.

Gorz entendia que a filosofia não servia para explicar o amor. (Quem leu Metafísica do amor, de Schopenhauer, sabe que Gorz está com a razão). O amor é o deslumbramento de uma pessoa pela outra, pelo que elas vêem e sentem de mais inexplicável. Amor implica em união, Dorine dizia: “Nós seremos o que fizermos juntos”.

Gorz precisava de Dorine. Atenho-me a ele porque a carta é escrita por ele, deduzo que a recíproca tenha sido verdadeira. Dorine duvidava da aplicabilidade das teorias de Gorz, mas não lhe negava o apoio fundamental: “Amar um escritor é amar que ele escreva, dizia você. ‘Então escreva!’”. Gorz rebate: “Eu não posso me imaginar escrevendo se você não mais existir”. Não, sensível leitor, não se trata de auto-ajuda, é triste, é demasiado humano, pena que o humano ande tão fora de moda e o amor atualmente seja tratado como animal em extinção. Eu disse amor, note bem. Não confundir com atração física tão somente ou certos jogos de interesses que todos conhecemos muito bem e não saem da ordem do dia.

O autor André Gorz, filósofo e jornalista (Les Temps Modernes e Le Nouvel Observateur), sofreu influência de Karl Marx e Jean Paul Sartre. O leitor atento pode confirmar com a leitura de Estratégia operária e neocapitalismo, O socialismo difícil, Crítica da divisão do trabalho e Adeus ao proletariado. Filósofo importante, fez da ecologia um dos seus temas favoritos junto com o anticapitalismo que em dados momentos nos faz lembrar Theodor W. Adorno em suas críticas radicais à cultura atual onde o humano é preterido em nome de uma neobarbárie. Dorine, inglesa, nascida Doreen Leir, era uma atriz de teatro. Encontraram-se na Suíça; dois anos depois estavam morando juntos.

Dorine e André inventaram um amor e um mundo; o amor ainda hoje mantém contato com a realidade atual; o mundo de combate à doença, no entanto, e de alerta aos inevitáveis erros médicos não pode ser esquecido. Dorine e André já estavam mortos antes de suicidarem-se, o ato físico foi tão somente o ápice de uma morte espiritual que se deu com o avanço da doença de Dorine. André, porém, se manteve vigilante:

Estou atento à sua presença como estive desde o início, e gostaria de fazê-la sentir isso. Você me deu toda a sua vida e tudo de si; e eu gostaria de poder lhe dar tudo de mim durante o tempo que nos resta.

Em Carta a D., André Gorz combina amor e sofrimento na medida exata, embora intensos, no entanto este resenhista ranheta não faz pouco caso das intenções do autor, discorda apenas do momento escolhido para tão significativa declaração. Bem, mas o suicídio dele foi a grande declaração de amor, você deve estar pensando, amoroso leitor. Para não me tornar ainda mais chato, prefiro encarar Carta a D. como a última declaração de amor. Nesse caso, presumo a existência de inúmeras outras, próprias dos grandes amores.

Gorz contraria Adorno. Em Carta a D., o autor não desaparece na obra.

Carta a D. — História de um amor
André Gorz
Trad.: Celso Azzan Jr.
CosacNaify
112 págs.
André Gorz (Viena,1923-Vosnon, 2007),
Pseudônimo de Gerhard Horst, é autor de uma das reflexões mais importantes sobre o capitalismo e o mundo do trabalho no século 20. Com livros publicados em diversos países, foi um pioneiro na defesa da militância ecológica como uma política, tanto em sua obra teórica como eu seu trabalho na imprensa. Dedicou os últimos anos de vida a cuidar da doença da mulher, Dorine, período em que publicou uma série de ensaios de grande relevância, a começar por Adeus proletariado (1980) que marca o rompimento com o marxismo.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho