Um homem de setenta e dois anos, após sofrer um acidente que quase o faz perder a perna, encontra-se deitado no escuro em uma casa enlutada. Em sua noite de insônia, o homem se distrai imaginando histórias para afastar as memórias penosas do luto por sua mulher e pelo namorado da neta.
Com um enredo simples, Paul Auster, em Homem no escuro, faz uma tocante homenagem a Uri Grossman, jovem soldado israelense, filho do escritor israelense David Grossman, pacifista que, dois dias após assinar um manifesto pedindo um cessar-fogo na guerra entre Israel e Líbano, em agosto de 2006, soube que seu filho havia morrido, vítima de um míssil antitanque.
Auster, vivendo num mundo e num país envolvido em guerras e em crises das mais diversas, cria uma personagem também em crise. A história que a personagem imagina nesta única noite de insônia é uma em que as fronteiras entre ficção e realidade se esgarçam, permitindo que uma interpenetre a outra. August Brill, imobilizado sobre uma cama, não pode, e talvez nem seja capaz de imaginar uma história feliz. Por sua vez, sua personagem — um mágico, numa homenagem a um dos avós de Auster, que era mágico amador e que, após sua aposentadoria, passou a animar festas com o nome de Great Zavello — já surge condenado: Owen Brick surge dentro de uma espécie de túmulo, profundo, com paredes tão lisas que torna sua escalada impossível. Para sair deste buraco, ele necessita de ajuda, e, para obter ajuda, ele precisa fazer concessões, abandonar aquilo que Brick considera sua “vida real” e passar a ser personagem de uma história política confusa e assustadora, passada num mundo hostil, paralelo ao que vulgarmente chamamos de realidade.
Em entrevistas, Auster vai revelando de onde tirou essas hipóteses. No caso do mundo paralelo, inspirou-se nas idéias de Giordano Bruno, que, acreditando que Deus tivesse poderes infinitos, postulava que o mundo não poderia ser único, e que era apenas um dos infinitos universos paralelos que o poder divino criou. Essa hipótese casa-se às mil maravilhas com o fato, confessado por Auster, de sentir-se mergulhado numa outra realidade desde a época da eleição de 2000. O autor americano considera que Al Gore foi o legítimo ganhador do pleito e que as manobras perpetradas na Flórida foram um “golpe”. Incapaz de aceitar a desonestidade de seus conterrâneos, ele se sente como aprisionado numa outra realidade, que não aquela onde viveu até o ano 2000.
Guerra entre irmãos
Na história imaginada por Brill, o mundo onde Brick acorda é esse no qual Gore foi eleito, mas onde os Estados Unidos pagam o alto preço de uma guerra de secessão. O país dividido não sofreu o ataque terrorista de 11 de setembro, mas, com suas feridas expostas, deixou de ser hegemônico e se transformou no cenário de uma guerra entre irmãos. As personagens que vivenciam este momento estão, porém, conscientes de que o estado calamitoso em que se encontra o país é fruto de uma imaginação — mais especificamente, da imaginação desalentada de August Brill. A maestria de Auster, porém, vai adiando o momento de revelar o porquê do desalento do crítico literário aposentado e aleijado.
A trama, que tem como protagonista Brill, demora a se desenvolver. Há dois ritmos perfeitamente distintos, que separam as duas narrativas. A narrativa atribuída a Brill é rápida, esquemática, uma espécie de roteiro de filme de ação. A narrativa que seria possível atribuir a Auster é lenta, sem surpresas nem novidades, seu homem no escuro permanece na impenetrabilidade de uma noite interminável, que está dentro e fora dele. As ações que se desenvolvem nesta narrativa são mínimas — uma mulher que sai de sua cama para urinar no meio da noite; um homem que procura ver os ponteiros de um relógio; alguns passos furtivos de aproximação. Com parcimônia, o autor vai levantando os véus que permitem reconhecer cada um dos três habitantes da casa, e que revelam suas mágoas e enganos.
Brill se consome no escuro, aquietado. Ele não sonha — pensa com lucidez, está consciente e atento a tudo o que o rodeia. Ele é o testemunho da dor que consome as duas mulheres engendradas por ele: sua filha e sua neta. Ele é a personificação da dor, sofrendo física e espiritualmente. No entanto, August Brill não se deixa abater, ele reaje, seja afastando as memórias indesejadas, seja tentando compreender e assimilar os fatos e seus efeitos. Nas horas que vão se passando lentamente, Brill cria ou interpreta uma série de narrativas. Os filmes a que assiste em companhia de sua neta Katya, o texto que sua filha Miriam está escrevendo, as lembranças que pouco a pouco se insinuam, revelam seu passado e contaminam a narrativa que ele elabora. Todas essas histórias entram em tensão e servem para explicar umas às outras, esclarecer detalhes, ampliar significados. A construção é sutil, às vezes até traiçoeira. Como a trama novelesca da história de Brick é de fácil absorção e apelativa, como Brick se vê encarregado de chegar até seu próprio criador para eliminá-lo, o leitor se vê tentado a seguir essa narrativa brilhante, esquecido que os nomes escolhidos podem significar alguma coisa na história. Brick, que significa tijolo, que significa também teimosia (brick-head — dica que é dada no diálogo com a neta, quando o avô confessa não gostar de seu nome e sugere o nome Ed, cujo som pode evocar head), esse homem que não entende como as circunstâncias o envolveram e por que razão lhe foi oferecido o papel de protagonista, sustenta os holofotes da ação, mas não possui o brilho que está implícito no nome de seu criador.
Sinal de esperança
Esse outro homem no escuro não se deixa abater porque tem luz própria, e irá, pouco a pouco, clarear o universo em que lhe cabe viver. Esse foi seu trabalho de toda a vida: comentar os textos, encontrar suas verdades intrínsecas e demonstrá-las, guiando outros leitores. Ele aprendeu vivendo — pôde errar e conseguiu consertar seus erros. Não é de admirar, então, a escolha de assunto feita pela filha — Rose Hawthorne, filha de Nathaniel Hawthorne, que escreveu A letra escarlate — também sobre erros cometidos e reparados, ou purgados —, essa mulher teve sua vida partida em duas: uma primeira parte infeliz e sofrida, uma segunda redimida, altruisticamente dedicada ao tratamento de pessoas com câncer. Nas cenas comentadas dos filmes assistidos com sua neta, o que se depreende é sempre um sinal de esperança, de renascimento. Existe o amor, e esse amor dá significado à vida. O amor muda de face, aparece e desaparece, renasce, é o amor entre homem e mulher, entre mãe e filha, entre filha e pai, entre avô e neta. É um amor acostumado com a dor e com o fracasso, que deixa feridas e marcas, mas que pode se reconstituir e oferecer novas chances.
Dentre os poemas de Rose Hawthorne, um verso é destacado: “enquanto o mundo bizarro continua a girar” (as the weird earth rolls on) Este verso, tirado de um poema chamado Acordes finais, diz que só depois da morte é que se pode saber o poder do destino; mas, “enquanto o mundo bizarro continua a girar” cabe lutar com a memória, tentando adivinhar promissores amanhãs.
O livro termina, então, numa nota esperançosa. Depois de revelar, num tocante diálogo entre avô e neta, as dores do passado de ambos, depois de expor a terrível violência da morte do ex-namorado da jovem, o sono finalmente chega para Katya. A escuridão da noite também se desfaz, o homem no escuro pode desaparecer e dar lugar ao pai carinhoso que oferece aconchego e compreensão. Eles têm planos, mesmo que esses planos sejam “menores” como descobrir qual o melhor hambúrguer dos Estados Unidos. Eles se amam. E o mundo bizarro continua a girar, trazendo luz e esperança a cada manhã.