Um sorriso de Coringa

Quem nunca sentiu o impulso irresistível de investir contra a rotina das regras gramaticais?
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/07/2024

Gramática: conjunto de prescrições & regras que determinam o uso considerado correto da língua escrita e falada.

Prescrições & regras.

Regulamento. Normas. Princípios.

Mandamentos.

Padrões de comportamento.

Grades & algemas. Vigilância vinte e quatro horas por dia.

Quem nunca sentiu o impulso irresistível de investir contra a rotina das regras? De transgredir? Pelo simples prazer de transgredir?

Começando por algo bem simples. A pontuação.

Eliminando a pontuação, por exemplo. Eliminando também as letras maiúsculas.

quem primeiro usou eu não sei talvez um poeta quem souber me ensina mas eu sei vocês sabem todos estamos carecas de saber que o exemplo mais famoso de um texto sem pontuação é o último capítulo do romance ulysses de james joyce o caudaloso monólogo de molly bloom também chamado de fluxo de consciência o capítulo é um único parágrafo de sessenta e tantas páginas sem pontuação sobre uma complexa perplexa mulher em crise um ótimo exemplo em prosa de um texto aberto sem bordas uma vertigem um texto-experiência do tipo que sempre provoca a questão predileta dos beócios o que o autor quer dizer com isso mais recentemente o ficcionista davi boaventura publicou o breve romance mônica vai jantar hipnótico fluxo de consciência sem pontuação nem letras maiúsculas o romance é um único parágrafo de oitenta e tantas páginas sobre uma complexa perplexa mulher em crise mais um ótimo exemplo em prosa de um texto aberto sem bordas uma vertigem um texto-experiência do tipo que sempre provoca a questão predileta dos beócios o que o autor quer dizer com isso

Filtro Molly Bloom > texto sem pontuação.

filtro do pequeno benjamim {em homenagem a valter hugo mãe} > texto apenas com letras minúsculas.

Investir contra as regras de pontuação sempre torna mais antipático o texto. Mais excêntrico.

Uma pontuação subversiva convida ao jogo, ao trabalho cognitivo. Em busca do equilíbrio perdido, o leitor é obrigado a ficar mais atento, a rearranjar mentalmente a mancha tipográfica. Os leitores mais preguiçosos sofrem que é uma beleza.

O mesmo vale para os textos com pontuação, mas sem letras maiúsculas.

Aplicar os dois filtros num texto só — eliminar a pontuação e as letras maiúsculas — torna muito mais intensa a vertigem da experiência literária.

Desautomatizar.

Importunar os dispositivos e a disposição.

Outra maneira de testar a paciência do leitor subvertendo as regras gramaticais do uso da vírgula é simplesmente separar com vírgula todas as palavras de um texto.

Quem, primeiro, usou, eu, não, sei, talvez, um, poeta. Quem, souber, me, ensina… Mas, fiquem, sabendo, que, eu, batizei, esse, filtro, deveras, irritante, de, filtro, Teleros, em, homenagem, a, uma, ficção, do, subversivo, Decio, Pignatari, presente, na, coletânea, O, rosto, da, memória. Mais, recentemente, o, romancista, Álamo, Enfant, usou, o, mesmo, recurso, de, quebra-molas, em, boa, parte, do, seu, gigantesco, Um, mal-estar, fundamental. Não, existe, realismo-naturalismo, que, sobreviva, a, inúmeras, páginas, modificadas, pelo, filtro, Teleros. Os, freios, e, a, suspensão, do, veículo, mental, não, resistem. As, lombadas, desse, filtro, destroem, qualquer, possibilidade, de, função, referencial, da, linguagem, literária.

Outra malandragem do insubordinado Decius Infante é o filtro Pháneron: ap rimeiral etrad ap alavras eguinte ép uxada ea copladan of inald ap alavraa nteriorp rovocandou md esconfortot erríveln asf lácidasr etinasd ap obrea udiência.

Pontuação: quando menos é mais.

A estratégia de usar diálogos sem travessão ou aspas, na ficção, eu batizei de filtro Mandrake, em homenagem ao famoso personagem de Rubem Fonseca.

Sinceramente, nunca entendi por quê, em pleno século vinte um, os ficcionistas ainda usam travessão ou aspas pra sinalizar um diálogo, principalmente nas ficções em que não há um narrador, apenas personagens conversando.

No plano da ortografia, o que podemos fazer pra bagunçar o coreto do leitor careta?

Batizei de filtro Intervenção Cirúrgica quando uma ou mais letras mudam de posição dentro das palavras {primeiro exemplo}, ou uma ou mais letras desaparecem das palavras {segundo exemplo}.

1.
O primerio sintoma ofi a forte odr de cabeça. O segudno sintoma foi o deasparecimneto do meu teclado transvresal, do emu monitor ed cinco mil dólraes, da minha msea de acrílico made ni Japan. Olhei peal janela e noã me surpreendi ao preceber que não hvaia amis janela. Nme sala. Nem deifício. As psseoas continuvaam caminhando an calçada. Os crraos e os ônibus tmabém não hvaiam desaparecido ad avenida. { O fantsama da máqiuna, de Oly D. }

 

2.
Dsde q os inscssos trnsfrmram o engnhro em mtrsta d aplctvo e a prfssra d ingls em manicre, nsso prncpal lzer são as vstas smnais ao sprmrcdo nm tão lnge d nssa csa. A prncpal atrção é o ar cndcndo, mas aprvtmos, sm qalqer embrço, as frqntes amstras grtis de blos, qjos, cfés, achcltdos e até uma evntual cchça de mrca. { Crse, de Ricardo Lahud }

Quem nunca sentiu o impulso irresistível de investir contra a rotina das regras? De transgredir? Pelo simples prazer de transgredir?

Mergulhando mais fundo na sabotagem ortográfica, merece muitos aplausos a coragem do famigerado Glauco Mattoso, que rejeitou todas as reformas ortográficas. Quando perguntado por quê, o autor responde:

Simples, meu caro. Não é só opção esthetica, mas tambem politica, de resistencia às dictaduras. Foi no Estado Novo que Getulio impoz a reforma de 1943 e foi no governo Medici que ella se completou nos detalhes. Não dá para acceitar que, em 2009, numa democracia, alguem tente impor outra reforma. Italiano e hespanhol são “reformados” ha seculos, mas francez e inglez não reformaram. O portuguez usava o mesmo “PH”, mas quiz imitar o hespanhol. Outra coisa que não acceito: os accentos. A antiga orthographia evitava accentos e sigo tal criterio, inclusive quanto ao trema. Só accentuo a ultima syllaba, quando necessario (“está” para differenciar de “esta”), mas, fora disso, dispenso accentos, trema, hyphen, etc. Abbraço.

Nada mais justo do que batizar de filtro Mattoso a estratégia de escrever prosa e poesia usando a ortografia anterior às reformas.

Mas se vocês planejam bagunçar a confortável inércia do senso comum escrevendo prosa ou poesia usando o português mais antigo, do tempo do Brasil Colônia, então estamos falando do filtro Guedes, em homenagem a Luiz Roberto Guedes, autor da novela O mamaluco voador. Narrada pelo jesuíta Manuel da Nóbrega em puro português quinhentista, essa ficção epistolar resgata a lenda perdida do primeiro padre voador da Terra Brasilis: o noviço mameluco Anrrique Braz, filho de um ex-frade franciscano e de uma índia cristianizada.

No entanto, meus queridos transgressores em treinamento, se vocês preferirem um recurso menos agressivo, menos antipático, recomendo que usem o filtro Cardoso ou o filtro Ramil. No próximo número do Rascunho falarei mais sobre eles.

E sempre que os leitores vierem com a clássica pergunta — o que o autor quer dizer com isso? — minha sugestão é que respondam apenas com um sorriso, nada mais que um sorriso.

Um sorriso de Gato de Cheshire.

Um sorriso de Coringa.

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho